O país que já não é meu.
Chegar a um país que já não é meu. Os anúncios nos aeroportos – primeiro em Baku; depois em Budapeste – ao Banco da China e ao renmimbi, pré-anunciando uma paridade ao dólar há muito desejada, serviriam de interlúdio ao “outdoor” à entrada do metro de Saldanha referente a uma exposição em grande dos guerreiros de terracota de Xian. Será que há melhor metáfora para definir quem é já um dos mais influentes novos senhorios deste rectângulo à beira-mar naufragado? Dou um doce a quem adivinhar… Pensando bem, não dou nada, até porque é demasiado fácil perceber quem ele é e também não é nada difícil deduzir que nenhum dos outros candidatos é português. Caído em desgraça (mas com muitos milhões resguardados num cofre algures nos Alpes) o “dono disto tudo”, resta a todos os outros – os Mexias, os parados e os faz-de-conta – o desempenho de lacaios pornograficamente bem pagos para assim estarem dispostos a vender mil vezes o País se preciso for. E venha de lá a OPA “xe-faxe-o-favore”.
Sinal que já nada disto nos pertence é ir duas vezes ao supermercado e das duas vezes receber por troco moedas cunhadas em diversos países da União Europeia, como revelam as suas variadas coroas uma vez que, como todos sabemos, a cara é sempre a mesma. Irónico: dessas dez moedas a única portuguesa é a de 10 cêntimos. Também não deixa se ser significativo que só nas ATMs (assim e doravante sinalizadas; dantes eram apenas, e tão só, simples multibancos) se possa retirar de uma só vez grandes quantidades, e em notas de 50 e 100.
Sinal de que já nada disto é nosso é ir comprar feijão e para nossa surpresa constatarmos que todo ele vem da Argentina e do Canadá. O modesto do feijão, vejam lá! Até a variante “frade” nos chega do distante Madagáscar…
Prossegue de forma implacável o desenraizamento da alma portuguesa nos epicentros das nossas urbes. Que outra coisa devo chamar a esta forma descarada-organizada de gentrificação a acontecer presentemente no Porto e em Lisboa mas que bem depressa se alastrará a todas as outras cidades do nosso país? E isto, sem que o Governo tome qualquer medida para estancar a sangria, que não é só de gente mas também dum comércio local com características únicas que praticamente desapareceu da baixa de Lisboa. Uns e outros, vitimados pelo pantagruélico e egoísta apetite dos fazedores de hotéis, lojas gourmet e franchises de anafadas cadeias multinacionais. E o povéu – como soe dizer – deslumbrado continua com essa coisa dos voos de baixo custo nos estarem a despejar em cima com camones a rodos. Todos, todinhos atraídos ao mel pelas tendências da moda de viagens impostas pelas Condé Nast do mundo do lado de cá e do mundo do lado de lá. Quando aqui há uns anos pela primeira vez ouvi dizer que Portugal estava na moda, benzi-me duas vezes e baixinho pensei aquilo que disse o Oliveira “Botas” quando foi descoberto o petróleo em Cabinda: “Só nos faltava mais esta!”. É que, e à semelhança do que acontece com o ouro negro, se é verdade que o turismo traz benefícios, ao longo prazo sempre se apresenta pesada e farta a factura a pagar. Passados os anos da engorda (de alguns, subentenda-se), acordaremos estupefactos de ressaca com a sensação que deixamos de nos sentir em casa. Ou pior: com a sensação de que a casa já não nos pertence.
Ouvem-se já os protestos às mesas dos cafés, nos autocarros, nas redes sociais. Jorram desabafos de gente nova e menos nova queixando-se de que os “estão a expulsar”, e não é só do centro da cidade mas também dos bairros periféricos. Aos velhos quem os vai escutar? Gastaram já todas as palavras e, que remédio, lá vão saindo, humilhados, depois de terem visto coladas à porta ameaças de despejo a fazer lembrar a dos “pogroms” levados a cabo pelo nazis na velha Europa. É verdade – como dizia o outro – que os senhorios não são a Santa Casa da Misericórdia, mas não pode valer tudo. Se não regula, se não estabelece limites, se não apara as unhatas ao gélido e cego mercado, serve para quê, afinal, um Estado?
O que se passou em Macau – com um Executivo alheio às questões sociais a assobiar para o lado e, como resultado disso, inúmeros residentes permanentes, encurralados, obrigados a mudar-se de armas e bagagens para o outro lado das Portas do Cerco – está a acontecer em Portugal.
Não confundamos as coisas. Os estrangeiros que agora chegam em catadupa nada têm a ver com os estrangeiros “aculturados” (e eu conheço alguns) que há décadas connosco convivem. Estes trouxeram dinamismo, diversidade e cor ao nosso país. Considero-os tão portugueses como nós, pois falam a nossa língua, gostam do que gostamos e vibram com o que vibramos. Os que agora chegam já chegam agrupados e nunca se irão misturar connosco. Para quê, se falamos tão bem a língua deles e os servimos tão servilmente? Viverão eles aqui ausentes, como vivem hoje os turistas do mundo inteiro que pululam pelos ditos paraísos tropicais. Será que ainda alguém acredita na treta do “sorriso tailandês” ou do “sorriso vietnamita”, só para citar os mais mediáticos? Eu que tenho andado por aí, bem sei aquilatar o peso e a medida desses esgares, quase sempre forçados. Bem lá no fundo, e compreensivelmente, detestam-nos. A todos nós que lhes devassamos a tranquilidade das suas vidas, as suas belas praias e os seus pitorescos vilarejos. Só que já não podem passar sem nós. O turismo, tal como uma droga, vicia. Oh, se vicia!
Pouco a pouco confirma-se aquilo que há muito venho dizendo: seremos uma colónia balnear com um exército de empregados de mesa prontos a servir o estranja endinheirado.
Joaquim Magalhães de Castro