Memórias de São Jorge da Mina
Toda a região do rio Volta – assim chamado pelo facto de vários afluentes o transformar em lago pouco antes de desaguar num golfo, e que daria nome a um país, o Alto Volta, mais tarde designado Gana – foi intensamente frequentada por mercadores de várias nacionalidades. Feitorias e fortalezas despontaram ali como cogumelos em terreno húmido. De todas elas, São Jorge da Mina, ou Elmina, é a mais conhecida, até porque detém o título de Património da Humanidade desde 1972. D. João II idealizou-a com o fito de apoiar a navegação que então se fazia – ainda a título experimental – e para criar uma feitora que assumisse o trato do ouro. Diogo de Azambuja, conquistador de Safim e construtor do Castelo Real de Mogador (Essaouira), em Marrocos, mais guerreiro do que navegador, foi o capitão incumbido de liderar a expedição que em Dezembro de 1481 deixou Lisboa, tendo chegado à Aldeia das Duas Pontas, no actual Gana, um mês depois.
Já uma década antes a região recebera a visita de João de Santarém e Pêro Escobar, os primeiros europeus nessas paragens. Por afluir ali o metal precioso oriundo das explorações centro africanas, deram-lhe nome de Mina de Ouro. Toda o Golfo da Guiné era designado como Costa do Ouro, se bem que o tráfico de escravos passasse a ser a principal actividade de portugueses, ingleses, franceses, holandeses e dinamarqueses.
As onze embarcações da frota de Diogo de Azambuja transportavam, além de marinheiros e soldados, num total de seiscentas pessoas, uma centena de construtores, entre pedreiros e carpinteiros. A pedra lavrada destinada ao castelo vinha toda numerada e fora anteriormente aparelhada, bastando apenas que fosse assentada no local escolhido. Pela primeira vez na história ergueu-se uma fortaleza com materiais vindos de fora. Prática que viria a ter seguimento no futuro com o transplante de castelos escoceses para os Estados Unidos da América para satisfazer os caprichos de multimilionários com a nostalgia pela história europeia…
O castelo de São Jorge foi um símbolo de perseverança. Os seus ocupantes resistiram por diversas ocasiões e sempre com o apoio das tribos locais, com as quais Azambuja tinha estabelecido relações cordiais, às investidas dos holandeses, sempre em número superior. Em 1637 estes acabariam por se assenhorar da fortaleza e ocuparam-na nos 150 anos seguintes, vendendo-a depois aos ingleses.
No século XIX, quando foi colocado um ponto final no tráfico negreiro, nas palavras de Jaime Cortesão, “ruim condição económica daquela época, que à consciência contemporânea repugna profundamente”, existiam na Costa do Ouro (literalmente a costa ganesa) 76 fortes – uma média de um forte em cada seis quilómetros. Actualmente quinze desses fortes mantêm-se em bom estado de conservação, ao longo de quase trezentos quilómetros de praia.
Na consolidação dessa federação comercial estava a fortaleza de São Jorge da Mina, erguida em 1482, três anos antes do início da colonização das ilhas de São Tomé.
O LÉXICO QUE NOS LEVA LONGE
Elmina, no Gana, é hoje uma povoação com várias dezenas de milhares de habitantes que subsiste da actividade piscatória, da produção do sal e do turismo, cada vez mais significativo. Protegido do Atlântico por uma lagoa natural e um mar calmo que convida as embarcações a atracar, este é um porto de excepção.
Garantem os guias de Elmina que apelidos locais “como Platte,Vroom,Vandyke e Plange recordam o resultado das relações entre soldados holandeses e escravas”. Esquecem-se, contudo, de mencionar os apelidos lusos, bem mais comuns nesse país. Basta folhear uma lista telefónica para o confirmar. Vemos aí, entre outras, as famílias Rocha, Silva, Silveira (ou Silvieira), Oliveira, Pereira e, ainda mais usual do que as anteriores, a família Da Costa.
Também nos idiomas locais abundam palavras de origem portuguesa. Na língua fante “pregow” é prego, “tabu” é tábua, “fononoo” é forno, “preste” é prato, “paano” é pão, “komidzi” é comida, “faka” é faca, “aspato” é sapato e um “sabi” é alguém que se julga mais esperto que os demais. A expressão “sacabou” aplica-se a algo que não presta e aquele que é boa pessoa é um “tabom”.
Os “gente tabom” são os escravos que decidiram regressar do Brasil a África, após obtenção ou compra de alforria. Ali chegaram, em 1836, liderados pelos Nelson, uma família de Accra, ainda hoje bem conhecida.
Se uma breve visita nos permite ter uma vaga ideia do legado deixado pelos portugueses, estadas mais prolongadas, como a do Marco Aurélio Schaumloeffel, leitor de português em Accra, resultam em animadoras descobertas. Alerta-nos este brasileiro, num artigo de um jornal local – cujo conteúdo, e com a devida vénia, tomo a liberdade de divulgar – para a presença de vocábulos portugueses nos idiomas dos Ga, dos Akan e dos Ewe. São sobretudo palavras relacionadas com à alimentação, utensílios de cozinha, ferramentas, vestuário e religião.
Se os Ewe e os Ga usam “abolo” e “ayo” para designar, respectivamente, bolo e alho, os Akan escrevem “keesuu” em vez de queijo. Dispensam tradução os nomes de certos peixes – “barracuda”, “tilapia” e “garoupa” – e o “kafe”, comum aos Ewe, Ga e Akan, deriva certamente do nosso café.
A “vele” dos Ewe acende como a nossa vela, a “safe” dos Akan tem o condão da nossa chave, e o “flonoo” dos Ga coze tão bem como o nosso forno. Cobre é a triplicar – “akooble” (Ga), “kobere” (Akan) e “akobli” (Ewe) – e prego é “prekko” para os Akan e “plekoo” para os Ga, cujos pescadores chamam “agulia” à agulha com que cosem as suas redes.
O nome de diversos talheres tem origem portuguesa, o que é natural pois tais objectos eram alheios às culturas africanas. Os Ga usam “gafolo” ou “gafojii” e os Ewe “gaflo” e ambos bebem de um “kopoo” e pagam o que comem num restaurante depois de pedirem “akontaa”, tal como qualquer um de nós.
Os Ga vestem “kamisaa” feita de “seda” e calçam um par de “aspaatere”, assim como os Ewe ou os Akan, independentemente dos “és” e “ás” mais ou menos no étimo “sapato”.
Para os Akan a água está associada à higiene e deu origem às palavras “aguaree” (banho, lavatório), “aguare” (banho) e “guare”(lavagem).
Também a presença dos missionários deixou marcas no léxico. Há Ewes que são “catolico”, vão à “misa”, lêem a “biblia” e, claro, piamente acreditam em “Kristo”.
Finalmente, uma palavra a respeito do afamado mercado de Tudu, em Accra. Na década de 1940 os portugueses estabeleceram aí algumas lojas, rivalizando com os comerciantes do mercado Makola. Para combater a concorrência, diziam aos potenciais clientes que apenas nas suas lojas “se podia encontrar de tudo”, daí o nome actual. Mais tarde, sírios e libaneses substituíram-nos e hoje em dia é a vez de ganeses e chineses dominarem o negócio. O nome, porém, permaneceu. E é português.
Elmina tem vindo a transformar-se num verdadeiro local de peregrinação, sobretudo para quem ali procura as suas raízes. O local está associado à prática da escravatura e é a pensar nisso que as pessoas visitam o local.
A estrutura arquitectónica é muito mais elaborada e complexa do que habitualmente vemos em fortes similares. No primeiro andar temos os arejados aposentos do governador, as camaratas dos militares e refeitórios. No rés-do-chão situam-se as masmorras, divididas por sexos, os postos de comércio, as celas de prisão comum e as salas de armazenamento de munições. O exterior é reservado aos terraços, às torres de guarda, à igreja portuguesa e aos muitos canhões remanescentes. Dali se obtêm as melhores panorâmicas. Em frente vemos o mar, a baía e o amontoado de barcos ancorados ou em plena faina piscatória. O azul é cor predominante.
A mais conhecida das repartições, pelo pior dos motivos, é a “porta do não retorno”, propositadamente pequena, de modo a que por ali não passasse mais do que uma pessoa de cada vez. Ouço um guia dizer: “Nenhum africano que saiu por esta porta voltou a África”.
Joaquim Magalhães de Castro