A Rosa Vermelha
“Pretendia unicamente rezar perto da imagem de Nossa Senhora de Belém de inícios do Século XV que veio da ermida em Belém, onde os navegadores portugueses rezavam antes de partirem para as Descobertas”
Hoje acordei com um fito em mente. Tinha já programado ir fazer uma visita ao Núcleo Arqueológico da Casa dos Bicos. Desde o ano 2009 que sentia vontade de fazer esta visita, aguardando pacientemente a reabilitação do edifício. Olhei para uma rosa vermelha em veludo. Tinha-me sido oferecida pela mulher do falecido presidente do “European Offender Employment Forum”. Na altura pediram a minha colaboração para organizar um fórum a nível europeu denominado “Making it Work – Turning Good Practice into Standard Practice”. Teve lugar nas instalações gentilmente cedidas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial, situadas em frente à Casa dos Bicos. Lembro-me que fiquei fascinada por esta casa. O Fórum decorreu lindamente. Como agradecimento pela organização, ofereceram-me simbolicamente uma rosa vermelha. Lembro-me de na altura ter referido que a minha maior recompensa seriam os frutos desta Conferência de Lisboa, que fosse recordada pela riqueza das trocas de experiências visando a implementação de novas medidas e estratégias neste domínio.
A partir dessa data, de vez em quando, passava pela Casa dos Bicos sem nunca ter entrado. Hoje tinha chegado o momento de concretizar a visita. Por ostentar uma fachada singular revestida por uma malha reticulada de “pontas de diamante” designadas por “bicos”, inspirada em modelos renascentistas italianos. A obra é atribuída a Francisco de Arruda. O terramoto de 1775 e o incêndio que se seguiu foram responsáveis pela destruição dos dois pisos superiores. A descaracterização do edifício tornou-se evidente, vindo a funcionar nele um estabelecimento ligado ao bacalhau. Em 1910 foi classificado como Monumento Nacional e adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa em 1955.
No início dos anos 80 foi reabilitado para acolher dois núcleos expositivos no âmbito da XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura. O projecto da autoria da responsabilidade dos arquitectos Manuel Vicente e Daniel Santa-Rita, restituiu a volumetria original da casa… Em 2008 a Autarquia cedeu os pisos superiores para a instalação da Fundação José Saramago, reservando o piso térreo para a criação do núcleo arqueológico que integrou ainda outros vestígios recuperados em nova campanha arqueológica desenvolvida pelo Município.
A Casa dos Bicos, enquanto exemplo emblemático do Século XVI, contém memórias onde se cruzam vestígios de diversas épocas ao longo de cerca de dois mil anos. Da cidade romana de Olisipo foram identificados vestígios de uma unidade fabril de preparados de peixe datada do Século 1 d.C. A identificação de um troço de muralha e torre de planta semicircular documenta o reforço defensivo das cidades romanas a partir do Século XIII dando origem à desactivação da unidade fabril da qual subsistem quatro tanques. A intervenção arqueológica permitiu comprovar que o traçado da muralha medieval integrou neste local a antiga muralha romana, sendo evidente a construção de uma nova torre quadrangular sobre a pré-existente… A construção da Casa dos Bicos veio alterar a fisionomia do local, respeitando o alinhamento da face externa da torre que foi absorvida pela construção. Milhares de fragmentos de peças foram recolhidos nas intervenções arqueológicas, destacando-se a colecção dos objectos usados no quotidiano na Casa dos Bicos. E porque nos encontramos na Casa dos Bicos, destaco a frase de José Saramago in “Cadernos”, datada de 2008: “(…) para navegar no mar do passado remoto teremos que utilizar as memórias de um espaço continuamente transformado (…)”.
Deixei a Casa dos Bicos impressionada com a riqueza arqueológica da cidade de Lisboa e ciente que teria de voltar para concluir o artigo que tinha tomado um rumo diferente do inicialmente pensado, ou seja, as Muralhas de Lisboa, a Cerca Velha. Quanta história se encontrava sepultada debaixo dos meus pés! Recordei o Paço Real no Terreiro do Paço… sepultado aquando o terramoto de 1755.
Na Rua da Alfândega entrei na igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, aclamada Rainha e Padroeira de Portugal. Esta igreja foi reedificada após o terramoto no local da antiga igreja da Misericórdia, aproveitando os elementos quinhentistas sobreviventes. Já tive a oportunidade de escrever um artigo sobre esta belíssima igreja. Hoje pretendia unicamente rezar perto da imagem de Nossa Senhora de Belém de inícios do Século XV que veio da ermida em Belém, onde os navegadores portugueses rezavam antes de partirem para as Descobertas. Foi uma visita rápida. Ia ter lugar a celebração de um matrimónio. Resolvi parar seguidamente no restaurante Martinho da Arcada, no sentido de tomar um café e relaxar um pouco. Gentilmente deixaram-me sentar na mesa onde o escritor Fernando Pessoa antigamente se sentava. Olhei para o horizonte. O Terreiro do Paço estava lindo. Uma das mais belas praças a nível mundial. Ao fundo o majestoso Cais das Colunas repleto de turistas. O céu muito azul. O Sol incidia raios de luz sobre o Rio Tejo. Uma paisagem de cortar a respiração! Quão bonita é a cidade de Lisboa, palco de tantos acontecimentos ao longo da História. Pela memória surgiu um poema de Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal, São lágrimas de Portugal”.
Termino este artigo, denominado “A Rosa Vermelha”, pedindo a intercessão da nossa Rainha e Padroeira Nossa Senhora da Conceição para que se alcance a paz em todo o mundo, em particular na Ucrânia.
Maria Helena Paes
Professora
LEGENDA: Imagem de Nossa Senhora de Belém, à direita