A conversão de um moribundo na selva
Para tamanha viagem (entre Bengala e o Arracão) não seria necessário trazer comida, pois pelo caminho abundaria caça, peixe nos caudalosos rios, além das mais diferentes frutas silvestres. Fundamental mesmo era levar suficientes moedas, e, sobretudo, ofertas, pois sem elas nada feito.
Manrique tinha plena consciência do efeito que geraria a sua chegada à capital do Arracão. Apesar da significativa dimensão da comunidade católica residente em Mrauk U– mercenários e comerciantes e respectivas famílias, mais prisioneiros e alguns cristãos nativos –, não havia ali uma única igreja nem sacerdote para alimentar o culto. Adivinhando previsível grande afluência de gente assim que se soubesse da sua chegada, Manrique juntou à bagagem o necessário para a celebração da Eucaristia há tanto tempo aguardada: vinho, cálices, paramentos e os livros sagrados. Ficara decidido que partiriam depois do anoitecer, evitando assim os espiões do governador.
Durante a missa da tarde, Sebastião Manrique exortou os fiéis a rezarem por ele e pelo capitão GonçalvesTibau, pois uma viagem em plena época de monção não era tarefa nada fácil. Previam-se imensos perigos pelo caminho e mesmo quando chegassem a Mrauk Usabe-se lá se o Thiri Thudhammaos receberia? Contudo, era essencial que fossem. A continuidade da prática do Catolicismo em Dianga, e até a segurança e bem-estar de todos os seus residentes católicos, dependia do sucesso dessa jornada.
Ao cair da noite, cumpridas as últimas despedidas, Manrique e Tibau, acompanhados dos respectivos criados e catequistas, embarcaram numa galera. Entre Diangae Ramu, no sopé das montanhas que separam a Índia do Arracão, o litoral é plano e entrecortado por riachos, o que lhes permitiu evitar as vagas alterosas do Oceano. Demoraram três dias a chegar a Ramu, cidade governada por um arracanês, “amigo dos portugueses”, a quem ofereceram um “belo presente de musselina indiana” e não hesitaram em revelar o objectivo da sua viagem. É claro que o arracanês os encorajou a prosseguir, mas fechou-se em copas quando os viajantes tentaram saber quais as reais intenções do seu soberano. A jornada fora terrível, marcada por constantes chuvas diluvianas e ventos fortes; e não havia perspectivas de tréguas meteorológicas. Como pretendiam eles chegar a Mrauk U? Responderam os nossos que iriam tentar navegar ao longo da costa e assim percorrer as cem milhas que separam Ramu da foz do rio Caledão (Kaladan), já que a partir dali podiam navegar tranquilamente até à faustosa capital do Arracão. Informou-se o governador junto dos seus guarda-costas se tal era possível. Estes garantiram-lhe logo que não. A cada dezena de quilómetros desciam torrentes das montanhas, “tão profundas e rápidas” que nem mesmo os elefantes conseguiriam vadeá-las. A única alternativa parecia ser o caminho de montanha que desembocava na cidade de Peroem, nas margens do rio Mayu. A partir daí, graças a uma intrincada rede fluvial, era possível descer até à capital. Lembrava Tibauo perigo que representavam os tigres e a dificuldade de seguir correctamente o trilho, mas logo o tranquilizaria o arracanês ao prometer-lhes guias locais. Dentro de alguns dias iria enviar sob escolta para Mrauk U“cinquenta e três indianos” capturados nas habituais incursões piráticas. O melhor era juntarem-se à comitiva, mas para isso teriam de aguardar dois dias. É claro que os portugueses concordaram com a proposta. Na noite seguinte, sob o olhar de trinta guardas, chegaram os prisioneiros, algemados e com coleiras de ferro em volta do pescoço às quais se prendia uma corrente, ligando-os uns aos outros. Diz-nos Manrique que eram “novos e velhos, alguns hindus, alguns muçulmanos, inocentes indo para a perpétua servidão”.
No dia seguinte, de manhã cedo, partiu a comitiva. Manrique tinha consigo dois catequistas e um servo, Tibau, alguns servos e escravos, todos católicos, pois naquela época os servos adoptavam a religião dos seus senhores. O governador de Ramu havia-lhes providenciado dois elefantes, um para carregar a bagagem e o outro, “que tinha um confortável ‘howdah’ [assento] com colchões e cortinas”, para uso exclusivo do militar e do sacerdote. No entanto, eles preferiram manter-se na galera (era mais confortável!) até aos contrafortes dos montes arborizados doravante a transpor. E foi aí, no momento em que eram transferidas as bagagens para o dorso de um dos paquidermes, que um tigre, “tão grande quanto um touro jovem”, irrompeu da vegetação rasteira, e, “antes que um tiro pudesse ser disparado”, abocanhou um dos soldados da escolta arrastando-o consigo. Seguiu-se uma saraivada de lanças atiradas pelos camaradas do infortunado, acompanhadas de grande gritaria que pretendia assustar a fera. Em vão! Apenas os disparos de um dos criados de Tibaufizeram o felino largar a presa. Mas o homem estava já gravemente ferido. Quiseram os soldados levá-lo imediatamente para o barco, mas os criados cristãos optaram por chamar o frade. Em termos médicos pouco havia a fazer, mas espiritualmente tudo estava em aberto. Havia ali uma alma a ser salva! Manrique ajoelhou-se na lama ao lado do moribundo e, falando em Hindustani, tranquilizou-o dizendo-lhe nunca era tarde demais para ele se tornar cristão. O soldado – certamente budista – face à morte que se aproximava agarrou-se a essa tábua de salvação e perguntou humildemente como fazer. Profundamente satisfeito, o frade tirou do pescoço o crucifixo de metal que sempre usava e, colocando-o entre as mãos do moribundo, baptizou-o com nome de Boaventura. Nessa altura, o homem estava já inconsciente. Manrique ordenou então que se acendesse uma vela e colocando “este divino símbolo da nossa redenção perto do seu rosto” encorajou os cristãos ali presentes a recitar com ele as orações pelos moribundos E assim o fizerem até o infeliz soldado dar o último suspiro.
Joaquim Magalhães de Castro