CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 76

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 76

Um olhar sobre a Índia.

Estamos em Setembro de 1640 e é a terceira vez que Manrique visita Bengala. Prossegue directamente o nosso herói para Daca com o intuito de inspeccionar as cristandades locais, e aí despenderá quase um mês, deixando-nos sobre a dita um relato bastante completo: “Esta é a principal cidade de Bengala e a sede do principal Nababo ou vice-rei, nomeado pelo imperador, que concedeu esse vice-reinado, em várias ocasiões, a um de seus filhos. Situa-se numa ampla e bela planície às margens do famoso rio Ganges, ao longo de mais de légua e meia”.

O relato de Manrique é, de resto, o primeiro a revelar o crescimento e desenvolvimento dessa capital de província do império mogol. Nota que nos subúrbios, “a oeste, leste e a norte”, viviam muitos cristãos e aí havia “uma igreja pequena, mas bonita, e um convento”. Fala-nos dos vários entrepostos portugueses em Bengala, com natural destaque para Hugli, e os parceiros comerciais, hindus ou muçulmanos, com os quais os nossos mercadores e alevantados transaccionavam o arroz, a seda, o açúcar, o índigo, a laca, a manteiga, o algodão e, sobretudo, a famosa musselina “de cinquenta a sessenta metros de comprimento (…) com bordas de ouro e prata de sedas coloridas”. Esses tecidos de alta qualidade eram transportados até à Pérsia, Turquia e muitos outros países, no interior de “bambus ocos, com cerca de dois vãos” que lhes garantiam a devida protecção.

Fornece ainda Manrique um relato bastante vívido dos hábitos, maneiras, vestuário, dietas, etc., dos habitantes daquelas paragens com “mulheres bem mais amorosas do que os homens” sendo o povo de Bengala, no geral, “bastante supersticioso”.

Abandonada a ideia de voltar a viver em Goa, Manrique opta pelo regresso à Europa, desta feita por via terrestre. Por uma questão de comodidade e segurança, viajará o nosso frade disfarçado de mercador local, estratagema desde sempre adoptado pelos jesuítas destacados na Ásia. O início da jornada, 4 de Agosto de 1640, será por via fluvial. Subirá o frade o leito do Ganges, porém uma denúncia – por estar a viajar sem a devido salvo-conduto – leva-lo-á à prisão onde é atacado por uma febre violentíssima. Temendo a morte eminente, Manrique solicita o regresso a Daca, onde poderá encontrar um padre que o confesse e lhe ministre os últimos sacramentos. Mas não tinha chegado ainda a sua hora! Uma vez restabelecido, refará o mesmo caminho, Ganges acima.

Manrique é um dos primeiros religiosos ocidentais a mencionar Benares, a cidade sagrada dos hindus, “que lhe chamavam Kashi, cidade resplandecente”. Sem tecer grandes considerações compara-a a “Roma, cabeça de toda a gentilidade de Bengala, Indostão, Gizarate, Cachanagá, Sinde e muitos reinos e províncias porque ali ocorrem milhares de gentios” para se purificarem na água do rio “que afirmam estar santificada por estar presente então o deus Gonga, pai e senhor daquelas águas naquele santo distrito”. Entre outros pormenores, Manrique fala-nos do tráfego mercantil nesse rio, que banha também as cidades de Patna (Patan) e Iavas (Allahabad), onde se transaccionavam inúmeros produtos “em particular panos finos de bambace, que se produzem em sete mil tecelagens que se encontram na cidade e arredores onde são feitos riquíssimos turbantes com orlas bordadas de ouro, prata, e sedas de várias cores com que eles usam em todos os sítios, como nós os chapéus”. Curioso o termo “bambace” (do grego “bambax”, ou seja, algodão) que está na origem de bombazina, vocábulo corrente na Língua Portuguesa.

O agostinho faz também referência a esse importante factor impeditivo do desenvolvimento da actividade comercial na região de Bengala, ou seja, os interditos de casta sancionados pelo brâmanes que “proíbem aos seus adeptos de deixar entrar nas suas casas gente de diversas leis e de dar-lhes de comer ou beber nas suas loiças”, prática ainda hoje comum entre as comunidades mais humildes dos contrafortes montanhosos dos Himalaias, onde o sapateiro, por exemplo, não entra em casa do brâmane, e vice-versa. Manrique aborda também o vegetarianismo estrito, pormenorizando: “estes não só não comem coisas animadas mas nem sequer rosas, e ervas ou legumes de cor vermelha, dizendo ser parecido com carne”. E faz ainda uma referência ao Jainismo, que entre os mogóis coexistiu com o Islamismo, e também com o Budismo entre os arracaneses: “A sua lei proíbe-lhes, sob pena de morte, de matar toda a coisa vivente, até os bichinhos imundos que se geram nos corpos humanos”.

Diz-nos a investigadora Maria Ana Marques Guedes, que sobre esta região se debruçou detalhadamente: “a aceitação do Jainismo pelos imperadores muçulmanos mogóis manifestou-se desde o tempo de Acbar, e manteve-se ao longo dos reinados dos seus sucessores Jahangir e Shah Jahan”.

A viagem prossegue rumo a Agra, desta feita num carro de bois. Espanta-se Manrique com a excelência das estradas e dos “caravancerais”, sinais da funcionalidade e organização do império mogol. Passará a noite de Natal de 1640 com os jesuítas de Agra, tendo visitado, ainda antes do Ano Novo, a lendária cidade de Fatehpur Sikri, erigida a mando de Acbar.

Joaquim Magalhães de Castro

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