CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 71

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 71

A coroação de Thiri Thudhamma

Na companhia de dois milhares de grepos o abade superior do pagode de Shitthaung aguardava Thiri Thudhamma. Este, ao chegar, desceu do palanquim e ergueu as mãos juntas, como se rezasse, até ao rosto e dobrou a cabeça, cumprindo assim a tradicional saudação budista. Como resposta, o monge apenas inclinou levemente a fronte, algo de impensável – lembra Manrique – num reino cristão europeu, onde nenhum eclesiástico, por mais alto na hierarquia, mereceria tal deferência da parte de um monarca.

Manrique participara na procissão, só que a partir de agora nem ele nem os capitães portugueses ou os oficiais muçulmanos estavam autorizados a prosseguir. Apenas os budistas podiam aceder ao interior do templo onde teria lugar a coroação. Salienta o frade, a este propósito, a polidez e afabilidade dos guardiões do pagode, que lhe deram conta dessa regra, em absoluto contraste com as habituais “más maneiras dos subordinados em certos lugares da Europa, onde, sem levar em conta a posição ou qualidade de um homem, eles o perseguem”. Devido a essa norma não temos o relato presencial sobre o que ocorreu dentro do Shitthaung. Porém, quem conhece o interior do templo (é o meu caso) pode imaginar o que se terá passado:

No topo da escadaria de pedra ficava o portão, “a Roda da Lei”, assim chamada porque fora esculpida na parte inferior do arco de pedra uma concha com a abertura para a direita, da qual saía um lótus, óbvio sinal de que o Budismo teve a sua origem no Hinduísmo. Afinal, uma visão muito bramânica, característica do Arracão e nada comum no resto do Sudeste Asiático, nem mesmo na vizinha Birmânia. O portão conduz a um grande recinto cerca de dez metros abaixo do pátio principal do pagode, edifício baixo e quadrado encimado por uma cúpula sólida de dezoito metros de altura, em forma de sino. O pagode em si não é adequado a qualquer cerimónia, pois não tem um interior propriamente dito, tão só uma galeria externa e outra interna, ambas cravadas em pedra e tijolo de grande espessura e ocasionalmente ampliada em câmaras de não mais de vinte pés quadrados. Abrigam as galerias um sem número de esculturas, e o seu formato labiríntico transforma-o num verdadeiro circumambulatório. Também o santuário, na parte central do pagode, é um espaço assaz pequeno. A coroação deve por isso ter ocorrido num pavilhão de madeira improvisado no pátio ou no terraço poente, onde, a julgar pelas ruínas ainda visíveis, existia um salão de dimensão razoável. Não se sabe qual o ritual empregado, mas pode-se seguramente presumir – como presumiu Maurice Collins – “que o arqui-abade pregou um sermão e que, diante da Ordem reunida, Thiri Thudhamma prometeu defender a fé budista”.

Manrique aguardou no exterior e pôde entretanto entrar no recinto inferior para admirá-lo, juntando-se aos príncipes e senhores ali reunidos. Volvidas duas horas, emergiu do pagode o rei empunhando a “espada da vitória” e ostentando na cabeça uma coroa cujas joias, de tão grandes e brilhantes, eclipsavam os brincos de rubi. Montou então o rei um elefante muito alto que o esperava e, “sentado sob uma sombrinha branca”, saiu em procissão com os nobres, todos a pé, na peugada dos elefantes de guerra e da cavalaria da guarda que liderava o caminho. Uma chusma em êxtase, muita dela mascarada, alinhava nas ruas decoradas com arcos triunfais. Nas varandas das casas senhoriais damas, jovens e velhas, mostravam as sedas e a pedraria, louvando Manrique a beleza das donzelas nos seguintes termos, obviamente eurocêntricos: “Embora tenham uma tez castanho-amarelada não temos menos motivos para louvar o seu Criador divino”. Comparava-as, é claro, às mulheres “da nossa Europa, com a suas peles brancas e as faces rosadas”.

Ao chegar aos aposentos, o rei desmontou e assumiu o seu posto num salão forrado a ouro. Manrique foi autorizado a entrar e deparou com alguém que até então nunca tinha visto: a rainha Nat Shin Mé, “Senhora do Paraíso”, acompanhada das suas damas. O rei pegou-lhe na mão e conduzi-a até uma janela que dava para um pátio lotado de pessoas a quem atiraram grande quantidade de moedas de prata, cunhadas especialmente para a efeméride. E, assim, se deu por encerrado o programa das festas.

Uns dias depois, Manrique dirigiu-se ao palácio para levar um presente ao rei, como era da tradição, acompanhado de um capitão – um certo De Lemos – recém-chegado de Dianga. Contava com ele para o auxiliar a fazer o pedido de licença de partida. Porém, no decorrer do encontro, Lemos inadvertidamente confessou que os católicos de Dianga estavam muito desanimados pois acreditavam que Manrique era prisioneiro em Mrauk U. A infeliz observação, que deixou Thiri Thudhamma irritado, seria prontamente remediada por Manrique, que com arte e engenho transformou-a num elogio. “Senhor da Vida”, disse ele, “os católicos de Dianga pensam em mim como prisioneiro da generosidade de Vossa Majestade e, de facto, a condescendência de Vossa Majestade tem sido tão avassaladora que não só me tornou a mim seu escravo e prisioneiro, mas também a todos os católicos do reino”. A lisonja arrancou um sorriso a Thiri Thudhamma, que de boa vontade concedeu ao frade autorização para partir, tendo sido emitido um salvo conduto dias depois. Estávamos no início do Fevereiro, tempo de mar ameno, assim que a viagem até Dianga decorreu tranquila e rapidamente. A morte de Thiri Thudhammaocorreria pouco tempo depois.

Joaquim Magalhães de Castro

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