O jantar com o príncipe
No exterior do palácio Manrique viu-se rodeado por uma jovial e ruidosa multidão de cortesãos que aguardavam a saída do “rei” recém-empossado junto a uma centena de elefantes do estábulo real dispostos em duas linhas e atrás deles muitos outros pertencentes a senhores que neles estavam montados. O som dos gongos e das flautas enchiam o ar e trupes de dançarinas e acrobatas pulavam, cantavam e faziam as habituais momices que tanto divertem o povéu. Não pareciam nada cansados com todo aquele escarcéu, ao contrário de Manrique que ansiava por sopas e descanso no recato do lar; até porque entretanto o Sol anunciara o seu ocaso. Ele e o capitão-geral dos portugueses (seria ainda Manuel Tigre?) dirigiram-se ao príncipe Toon-htan com o intuito de se despedir dele, mas este informou-os do banquete que daria essa noite na sua residência, para o qual desde já estavam convidados. E não queria ouvir um não como resposta. «Sabem bem o quanto aprecio os portugueses, sempre nos demos muito bem», dizia ele. A contragosto, uma vez mais, o frade aquiesceu; recusar tal convite equivalia a ofender um homem “de cujos bons ofícios a comunidade cristã dependia”.
Foram colocados à disposição dos europeus dois magníficos elefantes do estábulo real, porém, Manrique, considerando impróprio, como padre, “desfilar num elefante adequado a um personagem real”, optou por sentar-se junto ao capitão, e o paquiderme deste, conduzido por um rodeador grudado à sua cabeçorra, lá seguiu atrás do principesco séquito. Constata Manrique uma confusão tal que os animais, “embora como sempre cuidassem de seus pés, não puderam deixar de derrubar e ferir várias pessoas”.
Junto ao portão externo a ordenança fez troar os canhões em sinal de respeito. No vasto terreiro agrupavam-se os diferentes elementos da cavalaria doméstica. Chegou primeiro, a galope, “em cavalos enfeitados com armaduras de seda”, o esquadrão muçulmano, gente robusta do Norte da Índia de uniforme verde, munida de arcos dourados, aljavas entalhadas e cimitarras curvas. O contingente seguinte era composto por birmaneses do Pegu, fardas de cetim púrpura, nos cintos “espadas longas enfiadas em bainhas de prata gravada” e nos braços esquerdos pequenos broquéis ovais; cravejados de placas de ferro, os enfeites dos seus fogosos ginetes. Compunham o terceiro esquadrão birmaneses setentrionais, de Ava ou mais além, cavaleiros bem artilhados “com coletes e elmos de aço”, tendo como armas lanças curtas “que seguravam bandeiras”; multicores, os adornos dos seus alazões.
Encheu-se num instante a praça de elefantes, centenas de bestas de guerra com “espadas curtas nas suas trombas, que brilhavam na luz vermelha do sol poente, sempre que as faziam girar”. Tomadas as devidas posições, deu-se início ao longo cortejo; cavalaria na frente, elefantes de guerra a seguir, os nobres, depois (no meios dos quais seguiam os portugueses), e Toon-htan, por último, com os respectivos assistentes, “os quarenta belos jovens que o acompanharam ao palácio”. A visão de tão imponente animal às centenas replicado deixou Manrique deveras deslumbrado, não admira, pois, que deles faça pormenorizada descrição. Variavam em cor e magnificência os “howdahs”, cadeirões instalados no dorso dos paquidermes. Havia-os dourados, laqueados, esculpidos com altos-relevos de monstros, serpentes, espíritos voadores. Cobriam-nos dosséis de todos os tons, bordados ou tecidos, e tapeçarias e demais apliques, “e suas franjas eram fios de pérolas”… E se brilhavam os olhos dos elefantes de guerra, brandura transmitiam os de uso civil, uns e outros com igual disciplina. Dançarinas com “grinaldas de flores nas cabeças” deslizavam por entre as fileiras, passando por debaixo das trombas dos bichos e batendo neles com os leques chamando-os pelos seus nomes de guerra – “Vitorioso”, “Mestre do Trovão”, “Senhor da Frente da Batalha” – e estes, imperturbáveis, com diz Manrique, “domesticados que nem cães de estimação”. O holandês Wouter Schouten assistiria em 1676 a um desfile do género e dele nos deixou uma magnífica ilustração que complementa a vívida descrição do agostinho.
Com o lusco-fusco chegaram ao palácio do príncipe, “de telhado pontiagudo e adornado com figuras esculpidas de homens e animais entrelaçados na folhagem”, logo depois de atravessarem um bem iluminado corredor com lâmpadas queimando óleos aromáticos. As paredes eram cortinas de seda e das galerias ouviam-se vozes cantando ao som de harpas. Chegaram então a um salão onde um interminável jantar foi servido em mesas baixas com cinco ou seis pequenos pratos de porcelana para cada conviva. Transportada em bandejas por uma centena de empregados a comida era abundante e muito apimentada: diferentes tipos de peixes e aves, animais domésticos e de caça, tudo isto acompanhado com “montanhas de arroz”, condimentos e frutas. Manrique recusou-se terminantemente a provar pratos exóticos como “rato desfiado, cobra frita e fricassé de morcego”, e estranhou a parca oferta de bebidas. Findo o repasto seguido da respectiva sobremesa, entraram as dançarinas, não do tipo decoroso que dançava o balé clássico no palácio, mas mocetonas treinadas para agradar a despedidas de solteiro. Estavam vestidas com sedas ou diáfanas, “que não escondiam nenhum detalhe de sua pessoa”, obrigando Manrique, por decoro, a fechar os olhos.
Prolongar-se-á a festa até ao amanhecer, e o nosso frade admite ter regressado a casa “muito cansado e rabugento”… Ao longo de três meses ocorreram festividades do género, para cada um dos onze governadores empossados. Dir-se-ia que o rei tudo fazia para que os seus súbditos esquecessem os seus reprováveis e nada escrupulosos actos. Porém, embora todos tenham gostado dos espectáculos, alguns deles não se tinham esquecido do vil crime cometido por Thiri Thudhamma.
Joaquim Magalhães de Castro