CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 67

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 67

O elixir dos seis mil corações

Regressemos à corte do Arracão e aos seus soturnos corredores.Sabia Thiri Thudhamma que sem a ajuda dos portugueses seria incapaz de levar a cabo o empreendimento com que tanto sonhara, tornar-se Senhor do Universo, e isso deixava-o inquieto, pronto a fazer o que preciso fosse para atingir esse objectivo. Aconteceu, durante as seis semanas de ausência de Manrique, passar por Mrauk U afamado médico maometano, “possuidor de segredos ocultos”, que, pelos vistos, curara já muita gente. Rumores da sua reputação chegaram aos ouvidos do rei e ele, curioso, quis conhecê-lo. Como acontecera com o padre católico também com o muçulmano Thiri Thudhamma estabeleceu uma relação de confiança e proximidade ao ponto daquele lhe dizer que se bebesse um certo elixir, segredo lá muito dele, tornar-se-ia invencível, e poderia a partir daí dedicar-se de corpo e alma ao seu objectivo: “a conquista do mundo”. Sabia muito bem o truão que quanto mais elaborada fosse a mexerufada, e mais esdrúxulos os ingredientes, melhor resultaria o efeito placebo, e mais pontos acrescentaria ao seu já inflacionado prestígio. Indicou, pois, com alguma solenidade, quais os necessários itens para a miraculosa mistela. Nada mais nada menos do que “dois mil corações de pombas brancas e quatro mil corações de vacas brancas”, substâncias que imediatamente o monarca garantiu não haver qualquer dificuldade em suprir. Mas faltava ainda o último e o mais importante dos ingredientes. Proclamou então, com redobrada gravidade, o falso clínico: “precisarei também de seis mil corações humanos!”. O rei, fervoroso budista, mostrou-se chocado com este último requisito. Tirar a vida a seis mil pessoas inocentes era um acto contrário a todos os seus preceitos religiosos, já de si suficientemente abalados pela anuência em sacrificar milhares de animais sencientes não racionais… Mas a ambição de Thiri Thudhamma falava mais alto; havia já algum tempo alterara-se de forma significativa o seu usual comportamento, como o tinham constatado o embaixador Gaspar de Mesquita e o próprio Manrique. Thiri Thudhamma não era mais o rei tolerante e galhofeiro; apoderara-se dele uma doentia obsessão; tornara-se taciturno…

Ponderou este durante algum tempo e chegou à conclusão que, afinal, o reino pacífico de paz universal que tanto almejava merecia bem o sacrifício, tendo comissionado a sua polícia secreta para fazer o sujo serviço. Tinham ordens os agentes de acessar às casas durante noite e sequestrar as vítimas quando adormecidas, ou então surpreendê-las nas ruas secundárias e nos atalhos e, “se várias pessoas estivessem reunidas para algum propósito”, todas deviam ser levadas; tudo isto sem deixar rastos ou testemunhas. O local de execução deveria ser o mais ermo possível, “a coberto de espessa selva”, e caso algum deles fosse apanhado em flagrante estava fora de questão invocar as ordens do rei: a implacável justiça sobre eles cairia e o empalamento era o destino final. Houve grande cuidado em seleccionar as vítimas entre as viúvas, os órfãos, os trabalhadores sazonais, os escravos, enfim, todos aqueles cujo desaparecimento não despertasse quaisquer suspeitas…

Mas seis mil era um quantitativo de monta, pelo que bem cedo se exauriu a conveniente fonte, sendo obrigados os esbirros do rei a optar pelo sequestro de moradores nos bairros mais pobres. Apesar do secretismo, a macabra actividade acabaria por ser notada e as pessoas começaram a questionar em voz baixa a razão de ser dos estranhos raptos, havendo quem garantisse ter testemunhado as cerimónias do famoso “médico” mexendo em caldeirões que ferviam ao fogo enquanto ia recitando encantamentos e invocando espíritos malignos, e como o sabiam próximo de Thiri Thudhamma foram-se amontoando pesarosas suspeitas. Estava instalado o terror! Houve quem, apavorado, se barricasse em casa, não ousando sair nem durante o dia. Entretanto, alguns agentes foram apanhados em flagrante, arrastados para os tribunais, sentenciados e empalados, enquanto os colegas continuavam a batida, transferindo a actividade para as aldeias vizinhas quando se adensavam as presunções na zona onde actuavam. Havia que chegar a todo o custo aos seis mil corações, e a meta seria atingida ao cabo de algumas semanas.

Agora sossegado, Thiri Thudhamma, vendo quão alvoraçadas andavam as gentes, temendo um levantamento em massa que o derrubasse do poder, criou uma das duas favoritas medidas de distracção de todos os governantes. Como felizmente não faltava o pão, restava-lhe o circo como opção. Ao cair da noite, o estrondo dos disparos de canhões pesados aglomerou o povo num descampado em frente do portão leste – descrito por Schouten, anos depois, como “uma vasta esplanada em frente à fortaleza” –, pasmado com a intensidade e o brilho do permanente foguetório de artifício disparado para o firmamento iluminando-o. A isto juntava-se o chinfrim das trombetas e tambores troando os ares em toada de festança que se prolongaria por toda noite. Como se vê, nada melhor do que um vistoso espectáculo para acalmar a populaça. E este incluía, como nota Manrique, “passagens operísticas” escolhidas a dedo para dar a entender “que o tempo de angústia acabara”. Ao amanhecer pôde recolher a casa a multidão, em paz e segurança; no decorrer desse dia seria oficialmente anunciada a coroação de Thiri Thudhamma: ocorreria quando a monção acabasse. Uma cerimónia, recorde-se, há décadas adiada devido a uma velha superstição predizendo a sua morte doze dias após a sua coroação. Mas agora que bebera o elixir do “doutor” maometano, que mais tinha a temer Thiri Thudhamma?

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *