Admiração pelos budistas
Estariam longe de imaginar Inácio Gomes e os companheiros de infortúnio que do lado de lá da cordilheira viviam em condições similares compatriotas seus, os homens do aventureiro Filipe de Brito e Nicote, senhor do Sirião, ilha vizinha ao porto de Dagão na actual metrópole de Rangun. Também eles seriam degradados para Ava, então a capital dos birmaneses, após a capitulação da sua cidade amuralhada. A eles não lhes cortaram os tendões das pernas e não os despacharam para uma montanha distante, outrossim para as férteis planícies entre os rios Mu e Chindwin onde se fizeram agricultores, esposaram donzelas locais e fundaram a dita comunidade bayingyi, ainda hoje reputada em todo o Myanmar. A propósito, e em jeito de curiosidade: nos anais da história do Catolicismo da região de Bengala há registo de um padre católico ter atendido, em 1683, uma comunidade luso-descendente residente em Mariamnagar, na proximidade de Agartala, capital da província de Tripura, resultante de casamentos entre mercenários portugueses e mulheres locais. Esse clérigo é-nos apresentado como “Fr. Inácio Gomes”. Estaremos perante a mesma pessoa que o viajante agostinho conheceu nas montanhas do Arracão? No texto de Manrique nada indicia quanto a um possível passado religioso do seu anfitrião, embora não deixe de ser estranho que a missiva apresentada pelo monge arracanês estivesse redigida em Latim… Ora, nessa época, apenas os eclesiásticos falavam e escreviam o vetusto idioma, sendo pouco provável que um mercador nele se pudesse exprimir. Pode dar-se o caso de Inácio Gomes ser, de facto, sacerdote, muito jovem ainda, e, após o naufrágio, ciente de que passaria nos serros de Maum o resto da sua vida, ter-se juntado a uma mulher nativa (daí a necessidade do agostinho oficializar o casamento e fazer as confissões) e anos mais tarde, já em Bengala, após milagrosa escapatória do local de exílio, decidisse assumir de novo o papel apostólico. Como reforço de tão remota hipótese, lembre-se que o estado de Tripura fica relativamente perto da região montanhosa onde habita o povo chin. Há ainda a possibilidade de Sebastião Manrique ter conhecimento da anterior condição de Inácio Gomes mas, por razões morais, não a revelar nos seus escritos. Seja como for, temos aqui fascinante matéria para futura investigação e vemo-nos perante mais um dos muitos relatos de naufrágios que estiverem na origem de comunidades luso-descendentes. Cito aqui dois exemplos: os mata-biru do oeste da província de Aceh, em Samatra; e “a gente dos olhos verdes” do sul da ilha de Madagáscar.
Quanto à identificação do local, tarefa sempre difícil – a morfologia dos espaços altera-se radicalmente com o avanço do tempo e o que era outrora uma cidade pode não passar hoje de um humilde lugarejo, ou vice-versa –, e após demorada consulta, posso apenas acrescentar a constância, ainda hoje, de comunidades católicas entre os chins das montanhosas povoações de Sami e Paletwa. Seria pertinente saber se entre eles se encontram descendentes desses prisioneiros. É muito possível que sim.
A nobreza de carácter do monge da nossa história é salientada por Manrique, embora este considere muito estranho “que os agentes do demónio pudessem ser homens assim tão bons”. A verdade é que demonstrara não só caridade mas também sobeja tolerância, arriscando a vida para levar consolação a um ser humano adepto de uma religião rival… Diz-nos o agostinho que nunca mais ouviu falar dele, “nem dos que constituíam o nosso grupo, nem dos cristãos exilados nas montanhas”, concluindo com um “oxalá que Deus, na Sua infinita misericórdia, os levasse directamente para o Seu sagrado serviço. E oxalá que ele leve aos pagãos o verdadeiro conhecimento da Sua fé sagrada para salvação deles”. A verdade é que, apesar das farpas nas entrelinhas, transparece nas páginas de todo o “Itinerário” sincera admiração por aqueles povos pagãos, “piedosos, generosos e caridosos”, sempre respeitadores dos sacerdotes, apontando Manrique, não raras vezes, o comportamento dos budistas como um modelo a seguir pelos cristãos. “Fiquei edificado ao ver suas alegrias muito completas, a realização de tantos actos piedosos e tanta caridade, como a entrega de esmolas, o pagamento de dívidas, o fornecimento de ‘mesas-gratuitas’ com todos os tipos de comida e iguarias concedidas pelo amor de Deus no que quer que as pessoas venham a compartilhá-los, independentemente da classe”. Actos, no entender do frade, mais próprios de nazarenos do que de infiéis, embora nesse domínio estes “superam muitos cristãos”. Os monges budistas, por exemplo, não apenas pregavam a renúncia como a punham na prática, e davam o exemplo a seguir. Não havia motivos para espanto face a tão exemplar atitude, “pois a educação dada à maioria desses pagãos era, como eu disse, geralmente obtida nos templos ou nas casas particulares dos rolins”, religiosos despegados das coisas materiais e das insaciáveis ambições humanas que não só aconselhavam e alertavam, “de boca em boca”, para os obstáculos que essa busca coloca no caminho de quem aspira a uma vida espiritual, mas também ensinavam com o exemplo, “sabendo quanto maior é o efeito de realmente fazer o que se prega do que apenas pregar o que não se faz, assim como tantas pessoas que não apenas seguem a verdadeira fé católica, mas também professam um estado de perfeição”.
Joaquim Magalhães de Castro