CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 64

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 64

O disfarce de Manrique

Face ao dilema, e disposto a convencer o padre – tudo para ajudar o marido cristão da sua irmã, recorde-se – o monge revelou a Manrique o estratagema que tinha congeminado para poderem passar despercebidos. O padre teria de vestir a sotaina amarela dos monges e simular um estado febril. Assim, devidamente disfarçado e com o rosto e cabeça permanentemente cobertas, era grande a probabilidade de Manique poder iludir os postos de controlo. A ideia escandalizou o frade. Encarava-a quase como um acto de apostasia à sua religião. Não esqueçamos que Manrique era da Ordem dos Agostinhos, ortodoxos, tais como o eram os dominicanos ou os franciscanos; fosse Manrique da Ordem dos Jesuítas, adeptos fervorosos da adaptação para assim melhor evangelizar, com certeza que de imediato teria abraçado o brilhante estratagema do monge. Mesmo assim o clérigo acedeu, pois como ele nos diz: “Não podia ignorar o apelo de uma alma cristã”. Não eram os missionários capazes dos maiores sacrifícios, de passar fome, frio e suplícios, ir até às portas do fim do mundo se preciso fosse, em nome da fé cristã? No fundo, era uma questão de honra e de não manchar o bom nome e a coragem. Afinal, também o monge estava a correr risco de vida apenas para agradar a um seu familiar, a ele não traria qualquer proveito. Satisfeito com a decisão do missionário, o cenobita exclamou: “O que o meu cunhado disse a respeito da fé cristã deve ser verdade”.

Na noite da partida o talagrepo deu-lhe a sotaina e rapou-lhe o cabelo e a barba, mesmo assim as suas feições e a cor da pele continuavam a estigmatizá-lo como europeu. Saíram os dois da cidade pela calada da noite (como o faziam tantos missionários que partiam para o desconhecido, invariavelmente disfarçados de locais) e dirigiram-se para o rio Caladão (Kaladan) onde, acomodados num barco de considerável dimensão com oito remadores e um timoneiro, os aguardavam alguns noviços que com eles fariam a jornada. Manrique não esquecera de meter no seu saco de viagem os paramentos e o necessário vinho para a celebração da eucaristia.

As peripécias para iludir as autoridades que encontraram pelo caminho são dignas do melhor filme de aventuras! Só após um dia de viagem, rio acima, depararam com o primeiro posto da polícia. Na comitiva religiosa, Manrique ocupava o lugar do irmão do monge, também ele um religioso, que tinha ficado na cidade. Todos os que saiam e entravam naquelas terras de exílio eram devidamente contabilizados. Simulando cansaço e doença, sentando-se debaixo de uma árvore quando os funcionários reais iniciaram a inspecção, Manrique, invocando em voz sussurrante a protecção de Santo Agostinho, evitou uma abordagem directa, ultrapassando assim o primeiro obstáculo.

Dois dias depois, também ao entardecer, novo posto de controlo, desta vez muito mais rigoroso. O barco era deixado ali, e o resto do caminho devia ser feito por terra. Para resolver a questão, o talagrepo arracanês teve duas ideias brilhantes, previamente equacionadas. Começou por oferecer aos guardas “um presente de doze arráteis de pimenta”, causando com o gesto tal impressão aos funcionários do rei, naquelas paragens desterrados, longe da família, aborrecidos de morte e seguramente com um vencimento bastante reduzido, que aqueles se mostraram dispostos a dispensaram-nos de qualquer revista, a eles ou às fazendas que transportavam. O monge, porém, para não levantar suspeitas, e evitar mudanças de decisão, até porque a inspecção seria feita por etapas e por diferentes equipas de funcionários, insistiu em demorar-se mais algum tempo por ali, e ordenou aos noviços que preparassem o jantar, e, antes disso e no decorrer do mesmo foi-lhes oferecendo, em generosas doses, um licor de fabrico local. Literalmente embriagou-os, a uns e outros, e entre os acenos, sorrisos e movimentos trôpegos Manrique passou a são e salvo, prosseguido viagem sem maiores preocupações.

Ultrapassados os problemas levantadas pelos humanos havia que superar as agruras da natureza. Em frente esperava-os uma cadeia de montanhas a vencer – Manrique designa-a de “montes Maum” – por caminhos que, por serem escarpados e íngremes, melhor seria se os percorressem à luz do dia. Essa noite passá-la-iam, por isso, no cima de umas árvores, protegidos das muitas feras que por ali habitavam. O destino final distava ainda cinquenta milhas e como Manrique era obrigado a ir descalço (os monges budistas nunca se calçavam) e não estava habituado a tal, ao contrário dos seus companheiros de jornada, o ritmo era bastante lento. Ao quarto dia de viagem os seus pés estavam em tal estado que mal podia caminhar, tendo de ser transportado numa liteira por alguns dos noviços.

Na manhã do quinto dia chegaram às planícies cultivadas do interior da cordilheira montanhosa, habitada por chins e mros, povos primitivos que se dedicavam à agricultura. O monge expediu um emissário a avisar Inácio Gomes. Pedia-lhe que enviasse “alguns homens para ajudar a transportar” a liteira de Manrique. Gomes devia ter na altura alguma forma de poder, prestígio ou influência local, pois dispunha de servos que logo foram ao encontro dos viajantes. E o próprio Gomes, ansiosíssimo, pôs-se a caminho, “juntamente com dois companheiros seus”, movendo-se com extrema dificuldade devido à deficiência física que lhe fora imposta. Apesar do disfarce, Inácio Gomes reconheceu de imediato o compatriota e não se conteve: deu largas à sua emoção com lágrimas e agradecimentos repetidos “a Deus Nosso Senhor, que atendera às suas preces”.

Joaquim Magalhães de Castro

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