Audiência com a rainha-viúva
Definida a estratégia, recomendou o japonês a Manrique urgente solicitação de uma audiência com a viúva para lhe agradecer pessoalmente o favor. Concordou com toda a naturalidade o agostinho, só que havia um problema: esgotara-se o estoque de prendas, aquilo que designava de “curiosidades”; no fundo, algodão indiano fino e sedas chinesas. Os presentes oferecidos tinham sido mais do que o esperado. E como aparecer de mãos vazias não era opção, teve de recorrer a católicos ricos, gente de confiança, dos quais conseguiu numerário suficiente para adquirir prenda adequada que de imediato enviaria à nobre dama “para abrir o caminho”, como nos diz.
Encontrou o nosso frade, dias depois, a rainha viúva sentada “num estrado de quinze centímetros de altura” coberto com “um esplêndido tapete persa de seda e almofadas de veludo roxo bordadas com pérolas”. Seis damas de companhia ajoelhadas ao lado de Htwe Naung seguravam caixas de betel, mas também leques. No corredor ao lado aguardavam vinte cavalheiros de vetusta e venerável aparência trajando longos casacos de damasco roxo. Manrique fez a genuflexão da praxe, que a nobre aquiesceu com uma ligeira inclinação da cabeça, e de imediato dois dos homens adiantaram-se e conduziram-no de maneira cortês a um segundo estrado, “de altura menor que o primeiro, guarnecido com um bom tapete, embora comum, e com duas almofadas de veludo simples”.
Recorda Maurice Collis que “os portugueses tinham maneiras elaboradas” de estabelecer contacto com as autoridades dos povos com quem se davam, e Manrique não era excepção. Começou por agradecer o favor e fez questão de lembrar o quão afortunados eram os cristãos locais pelo privilégio de viverem sob a protecção de tão augusta figura. O teor do discurso era laudatório e bajulador quanto baste, provido de grande tacto pois mais valia um exagero agora do que um arrependimento depois. O certo é que as palavras do religioso português, talvez a sua maneira de ser e estar, ou quiçá “a sua aparência”, como equaciona Collis, deixaram deveras impressionada a ex-princesa birmanesa. Sentindo-se mais à vontade, dispensou os formalismos e aquele ar de magnificência noblesse obligee começou a falar da sua infância em Pegu e dos “bons padres” que a costumavam visitar, falando-lhe sempre da Virgem Maria. À medida que decorria a conversa espertavam recordações no hipocampo do cérebro de Htwe Naung. Dizia frequentar à igreja católica em Pegu, onde aprendera a rezar Avé Marias, agora esquecidas…
Visivelmente emocionada, Htwe Naung lamentava com suspiros a abrupta interrupção desses dias de felicidade. A casa onde vivia foi queimada, o pai, morto, e ela, raptada sem possibilidades de jamais voltar ao seu querido Pegu. Também na terra de exílio o infortúnio lhe bateria à porta. O seu marido, conquistador da sua orgulhosa nação, morreria jovem ainda. «Foi outra tragédia, porque eu tinha que amá-lo», dizia ela, conformada com a sua nova condição de despojo de guerra. Nessa altura corriam já pela face grossas lágrimas; atormentavam-na ainda memórias mais recentes: o assassinato dos dois filhos, vítimas das corriqueiras intrigas das cortes daqueles reinos. «Não admira», concluía, «que tenha esquecido o Avé Maria que tanto conforto me costumava dar»… A este ponto, incapaz de conter a dor, Htwe Naung deu sinais de colapso, tendo sido prontamente assistida pelas damas que a conduziram a uma sala ao lado. Manrique deu-se então conta da comoção que inadvertidamente causara… Sentia-se frustrado e zangado consigo próprio; será que tinha deitado tudo a perder!? Deveria retirar-se imediatamente ou aguardar a permissão da rainha viúva? Como se lhe adivinhasse o pensamento, um dos distintos dirigiu-se-lhe e, naquele característico tom de voz baixo dos povos orientais, de resto adequado à solenidade do momento, pedindo que não se apoquentasse com “a abrupta partida da Senhora da Vida”, pois só quem tenha sofrido infortúnios como os dela poderá entender a razão de ser das suas lágrimas. Nesse momento, uma das principais cortesãs, acompanhada por duas criadas, saiu da sala para onde a viúva se retirara e dirigindo-se ao frade pediu-lhe desculpas “em nome de Sua Majestade”, que não fora capaz de se despedir dele, mas que estivesse descansado pois ela dar-lhe-ia a ajuda solicitada. Manrique agradeceu e expressou profunda preocupação com a dor de Htwe Naung. «Se Sua Majestade se dirigir à Mãe Santa, grande será o consolo que dela obterá», disse Manrique ciente do poder que a Virgem Maria exercia junto da rainha-viúva.
Retirou-se a dama e os anciões presentes, assistidos por oficiais de diligências com bastões de prata, conduziram com solenidade o padre ao exterior do palácio. Htwe Naung manteve a palavra, enviando no dia seguinte a Manrique uma mensagem e, como presente, galinhas, arroz, manteiga, frutas e “dois pedaços de musselina com noventa metros de comprimento e três metros de largura” que o frade depois transformaria em cortinas para a igreja. Pela missiva ficou a saber que Htwe Naung falara dele em bons termos ao rei, embora sem mencionar o assunto em questão, pois não achara prudente fazê-lo, e aconselhou Manrique a solicitar uma audiência o mais rápido possível. O frade não perdeu tempo: iria ao palácio.
Joaquim Magalhães de Castro