CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 59

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 59

Estratégia para congregar os neófitos

O correr dos dias ofertaria Sebastião Manrique com uma brilhante ideia: e se ele conseguisse que os neófitos deixassem os seus bairros e viessem morar em Daingri-pet junto dos católicos portugueses e euro-asiáticos? Certamente que a proximidade da igreja e dos irmãos na fé, aliados à ausência de distracções pagãs, influenciariam positivamente o seu comportamento; talvez desse modo encarreirassem de novo pelo caminho certo. Manrique, porém, sabia que só poderia levar avante o propósito com o aval das autoridades. E aí estava o busílis! A intenção de agregar num só sítio todos os católicos levantaria, quase de certeza, as maiores suspeitas, podendo o rei e seus ministros desconfiar de uma qualquer trama política, ou até rebelião. A possibilidade de os portugueses, como nos lembra Maurice Collis, “bem armados e com conhecimentos de artilharia, levar a cabo um golpe de estado, fosse por iniciativa própria ou por instigação de algum príncipe rebelde ou ministro descontente”, não era de escamotear. Thiri Thudhamma tinha plena consciência do risco e por isso mantinha os militares estrangeiros sob rigorosa auscultação, daí Manrique ter arredado desde logo a tentação de partilhar o plano com o capitão-geral Manoel Rodrigues Tigre, seu anfitrião aquando da chegada àquele reino. O ideal era tomar o caminho mais enviesado possível para “chegar junto de Sua Majestade”, de modo a conseguir o seu consentimento.

Lembrou-se então de contactar Leon Donno, o samurai cristão que o acompanhara na viagem de Bengala ao Arracão. Começou este por lhe recordar o seguinte: juntamente com o elefante branco e as pedras preciosos os arracaneses tinham trazido do Pegu a donzela Htwe Naung, filha do rei Nanda Bayin, com quem Min Razagri viria a casar. Após a morte deste monarca, treze anos depois, em 1612, Htwe Naung passara a permanecer na Corte como rainha-viúva, prestigiante posição que mantinha ainda aquando a visita de Manrique, contava a dita 55 Primaveras, segundo as contas do frade. Ora, a mulher do capitão japonês, birmanesa de etnia, fora dama de companhia de Htwe Naung tendo, por via dessa antiga relação, acesso directo ao palácio. Propôs o seguinte o capitão Donno: pediria à esposa que falasse com a viúva. Esta possivelmente mostrar-se-ia receptiva à causa posto que, quando jovem, no Pegu, sentira-se atraída pela fé católica e até incentivara a acção dos padres responsáveis pelos serviços religiosos junto dos mercenários portugueses contratados pelo pai. É claro que tudo isso se passara há muito tempo, mas segundo informara a mulher do japonês, Htwe Naung não esquecera esses tempos e referia não raras vezes os preceitos que os padres lhe haviam ensinado.

Três jornadas depois, Donno dá conta a Manrique do consentimento da viúva em levar o assunto ao rei, aconselhando o português a ir escolhendo o momento mais oportuno para fazer a petição. Mas esta não devia ser directa, “o que complicaria o que de outra forma poderia ser efectuado sem dificuldade”, como nos diz Maurice Collis. Tirar partido do sistema vigente, aí residia o segredo do sucesso. Ao ser erigido um pagode a ele era agregado um determinado número de escravos para servir de criados, jardineiros e vigias. Ora, tendo em conta que a igreja havia sido recentemente inaugurada, justificava-se um pedido do género. Pedisse o padre – sugeria a viúva – escravos para auxiliar na igreja, escravos estrangeiros, não esquecesse!, “para não levantar suspeitas”. Uma vez concedida a autorização, poderia então Manrique incluir na lista quem muito bem entendesse. “Vinte pessoas era a quantidade habitual”, recorda Collis; porém, se Manrique juntasse a essa vintena de homens as esposas e demais familiares, o número aumentaria significativamente. Para apressar o processo, propôs a viúva-rainha, a oferta de gorjetas às pessoas certas, embora “tivesse a certeza de que Sua Majestade iria resolver a questão sem grande demora”. É deveres interessante, o conluio da ex-princesa birmanesa com o padre estrangeiro, definindo uma estratégia comum para ludibriar o rei do Arracão… Quiçá lhe desse algum conforto e encontrasse na trama a vingança possível por tudo aquilo que os arracaneses haviam feito aos seus familiares, ao seu povo e ao seu querido Pegu natal.

A invasão arracanesa da Birmânia em 1599 arruinou aquele país, fragmentando-o em minúsculos Estados. Toda a glória de Bayinnaung transitaria para Min Razagri, o novo campeão do Budismo, embora este tivesse desvalorizado o dente de Buda no decorrer do saque a Pegu, tendo a importante relíquia sido consagrada anos depois no pagode Kaunghmudaw, em Sagaing. Doravante seria o Arracão, e não a Birmânia, o centro do mundo budista. Lenta seria a recuperação da Birmânia, mas em 1610 o temível Anaukpetlun, neto de Bayinnaung, havia já unificado a maior parte do País. E como ansiava recuperar o elefante branco não hesitou em propor ao vice-rei de Goa, em 1616, um ataque conjunto a Mrauk U, declarando que se conseguisse apoderar-se do animal os portugueses poderiam ficar com o resto da pilhagem. A proposta, apesar de atractiva, não deu em nada: o Arracão era potência de respeito. A ameaça serviria, no entanto, de aviso. A norte, o mogol, constituía bravata bem maior; o que explica, de certa forma, a boa recepção a Sebastião Manrique… Também Thiri Thudhamma ansiava por um acordo com Goa capaz da afastar essa permanente dupla ameaça, a norte e a sul do Arracão.

Joaquim Magalhães de Castro

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