CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 58

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 58

Os cristãos de Mrauk U

No regresso a Mrauk U a visão intermitente de umas barcoitas varadas na terra lamacenta muito perto da estrada vão evocando a proximidade do rio, justificando assim a existência do posto comercial acabado de visitar. Pouco antes do ancoradouro enveredamos por um estradão ladeado de casas com quintais. No cimo do portão de uma delas – paredes azuis; autocolante “Merry Christmas” esquecido nas paredes do alpendre – avisto uma cruz, sineta identificativa dos nazarenos, exactamente como nas aldeias bayingyis do vale do Mu, a norte de Mandalay. «– É uma capela», apressa-se a explicar Soe, refreando-me o entusiasmo. Um jovem acompanhado pela mãe convida-nos a entrar e só então me apercebo que não estou diante de católicos, mas sim baptistas, e a dita “capela” mais não é do que uma habitação onde se exerce o culto pois os crentes, todos de etnia “chin”, não ultrapassam algumas dezenas. Apercebendo-se do meu desapontamento, o jovem vai lembrando que a mãe é católica, «convertida quando vivia em Yangon». Se considerarmos este núcleo baptista como único sinal visível da cristandade de Mrauk U, e a família de Soe (onde iremos já de seguida), devota seguidora dos preceitos budistas, podemos concluir que de pouco ou nada serviu o labor missionário dos agostinhos de Seiscentos e Setecentos nestas paragens.

Cá fora aproxima-se de nós um vizinho, amigo de Soe, de cútis clara, olho pardo-acinzentado, muito provavelmente um desses de quem ando em busca. Transmito-lhe essa minha suposição e recebo em troca o habitual sorriso envergonhado. Se suspeitas havia quanto à origem lusitana do motorista olhos-de-gato, elas desvanecem-se de imediato perante o cenário que nos aguarda a uns cinquenta metros dali. À sombra de um primeiro andar entabuado a teca, luxo que só uma casa em palafitas proporciona, está a mãe de Soe na companhia de familiares, dir-se-ia, à nossa espera. As caucasianas feições gerais e a tonalidade de pele de todos estes tios e primos de Soe não enganam. Num deles, de sobrancelha carregada, fronte alta e sorriso bonacheirão, a similitude salta à vista. Basta encostá-lo a um balcão de um tasco de uma aldeia de Viseu ou da Guarda com um copo de tinto na mão, e pronto: temos homem! Além dos familiares, está lá também um vizinho, senhor de idade, «conhecedor da história do Arracão», graças aos ensinamentos – esclarece Soe – de um professor entretanto falecido. Quero saber o que sabe ele, mas o medíocre Inglês do meu interlocutor-intérprete impede a necessária expedita comunicação e ficamo-nos pelos sorrisos e cortesias mútuas, dispondo-se todos eles, e de boa vontade, a deixarem-se fotografar.

Como se vê, há por aqui pano para mangas, mas para um corte e costura ideal disponibilidade de tempo, que agora não tenho, é obrigatória. Terá de ficar para a próxima.

Antes de me acantonar, breve passagem pelas ruínas do Palácio Real, onde um vendedor de postais e aquarelista (outro amigo de Soe), apontando para os muros ainda de pé, exclama peremptório: «– Portugueses e arracaneses construíram este palácio juntos». Nota-se que sofre de congénita deficiência na fala e entre indecifráveis pedaços de frases pesco um “Manrique” solto, isto, a respeito de uma igreja que o artista terá pintado com base nas memórias de infância. «– Your painting?», pergunto. E ele, meneando afirmativamente a cabeça: «– Yes! Pinta! Pinta!». Pinta!? Será que temos aqui mais um dos nossos vocábulos a enriquecer o léxico arracanês?

Se na Alta e Baixa Birmânia o mercenário Brito é figura incontornável, por cá o frade agostinho, pelos vistos, passa-lhe bem a perna…

Visitante privilegiado, Sebastião teve acesso, como poucos, a recantos interditos ao comum dos mortais, permitindo que nós, gente do futuro, graças aos seus escritos, nos deleitássemos com pertinentes pormenores da vida daquela época. Mas não se julgue que fosse curiosidade genuína o seu motor de arranque, antes as preocupações de homem religioso. Evangelizar, a sua empreitada; e dela tinha perfeita noção, agindo sempre em conformidade… Durante os dois meses subsequentes à consagração da igreja, a 20 de Outubro de 1630, Manrique manteve-se ocupado, organizando e instruindo a novel congregação. Preocupava-o o comportamento dos neófitos produzidos pelos missionários precedentes: viviam com mulheres locais, convivendo entre budistas e, como é natural, por mera questão de sobrevivência e integração social, participavam nas suas festividades, praticavam a caridade junto dos monges e mostravam respeito pelos pagodes e relíquias sagradas, actos que de sobremaneira chocavam Sebastião Manrique. O que aconteceria quando ele regressasse a Dianga? Valeria de algo tê-los assustado com ameaças de excomunhão e o fogo do Inferno? Será que alguma vez iriam arrepender-se de semelhante idolatria?! E se tal acontecesse, quanto tempo duraria a contrição? Pelas experiências anteriores, Manrique sabia que não valia a pena alimentar grandes esperanças… Urgia levar a cabo um acto ousado, digno do maior dos missionários. Mas, qual?….

Joaquim Magalhães de Castro

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