A muralha e os fossos portugueses
A vasta planície onde assenta a cidade de Mrauk U acolheu desde tempos imemoriais diversas capitais de reinos que tanto aí assentavam arraiais como daí se retiravam, movidos – confirmam crónicas coevas – pelas “febres pestilentas dizimadoras de homens, elefantes, cavalos e gado”.
Para regular o influxo e refluxo das marés dos rios Kaladan e Lemro, extensas barreiras e canais foram abertos e muitos dos lagos artificiais dependeriam do ir e vir dessas águas. Não é o caso dos esdrúxulos, falo da configuração, dos bem espontâneos lagos La Tsay, Anawma e Kassapa, ligados entre si por pequenos canais. Assentam originalmente em três vales profundos e já tiveram a protegê-los fossos que retinham a água das monções vinda das colinas e também a salobra dos pântanos em redor, evitando-se assim a contaminação de tão preciosos lençóis freáticos que os nativos oitocentistas, atados pela superstição de que nos fala Emil Forchhammer, não davam qualquer uso. É para aí que me dirijo, seguindo por breves instantes a estrada que liga a cidade ao rio Lemro, essa mesma utilizada pelos ingleses para invadir o reino em Abril de 1825, e devidamente assinalada no mapa do filólogo helvético. Mas há sempre uma ou outra distracção a demorar-nos o propósito:
Um grupo de adolescentes entretidos nas hábeis manobras do “sepak tekraw” (o vólei de pé aqui designado “chinlone”); colina desmatada há dias apenas, e que revela ao mundo um pagode até agora desconhecido; chusma de populares em plena campina revezando-se no sincopado treino da dança do bambu, actividade comum a muitos povos asiáticos. No caso, confidencia um dos assistentes, destina-se “à cerimónia fúnebre de um monge” recentemente falecido. Ao lado, ergue-se um palco em bambu igualzinho aos desses festivais, os “pwes”, que chegam a durar a noite inteira. Vão surgindo, a espaços, placas vermelho-cardeal chamando a atenção para templos menores, mas só a que indica o caminho para o “Wimana Grannany” – querendo o seu autor escrever “Wimana Granary”, ou seja, “Celeiro de Vimana” – atinge o seu objectivo.
Mitológicos palácios ou carroças voadoras, as “vimanas” vêm descritas nos textos hindus e nos relatos épicos em Sânscrito. O acesso a tão decepcionante celeiro (de arroz, logicamente), agora espécie de reservatório vazio, faz-se pelo intervalo de um pedaço solto de muralha. Junto aos lagos, fronteirando a margem norte, essa muralha é bastante mais do que mero pedaço solto, e surpreso fico por encontrar em razoável estado de conservação o portão de ombreira ogival e o topo do muramento, uns dez metros de largura, de onde melhor aprecio o placidez das águas, os gazebos semeados nas ilhotas, os reservatórios de água ainda hoje utilizados pela população, e o templo de La Tsay Kan.
Graças ao saber militar dos portugueses, Min Bin transformou a capital deste reino, até então amurada com débeis fiadas de tijolos, na “cidade mais fortificada da baía de Bengala”. Além da reconstrução da muralha, os engenheiros portugueses cavaram fossos em redor, à boa maneira dos castelos medievais europeus, como nos lembra a dupla Maurice Collis e San Shwe Bu no seu trabalho “Arakan’s Place in the Civilization of the Bay”. Se já peculiar era pelo facto de concretizar comércio oceânico apesar da distante costa, Mrauk U passou a contar com sistemas defensivos nunca antes testados. Tinha as vantagens de uma cidade portuária sem o risco de ataques surpresa de frotas inimigas, já para não falar dos arrozais em volta que lhe garantiam os necessários meios de subsistência. Curiosamente, o padrão da cidade, de traça irregular, utilizando as colinas como meios naturais de defesa, coloca Mrauk U mais próximo das fortalezas portuguesas do que das rectangulares cidades desenhadas a régua e esquadro suas vizinhas, veja-se o caso de Mandalay, por exemplo.
Também com o contributo (e talvez até supervisão) de lusos engenheiros, urdiram os arracaneses inteligentes labirintos preventivos: rios com saídas falsas e uma infinidade de lagos e canais concebidos para confundir o inimigo. Todos os fossos eram extremamente profundos e foram projectados para acomodar as águas das marés, estando a eles conectados os enormes reservatórios de água que ainda hoje vemos. Este meu entretimento com a paisagem é interrompido pela estridência de altifalantes que anunciam uma longa fila indiana de homens, mulheres e crianças. Trata-se, pelo aspecto da coisa, de um capítulo de uma cerimónia nupcial, provavelmente a condução do noivo a casa da noiva. Dois indivíduos segurando uma faixa de pano com dizeres inauguram o préstito seguidos de uma donzela com um jarro com flores à cabeça, um grupo de homens com bandeiras budistas, quatro timbaleiros e dezenas de homens e crianças com sacos nas mãos e ainda quatro meninas com tijelas prateadas, certamente os presentes para a noiva. Logo depois temos o noivo, vestido a rigor, montado num corcel engalanado levado pela trela, e protegido por um pára-sol segurado por um sujeito que caminha a seu lado. Segue-se outra montaria, desta vez com um criança seguida de uma fila de mulheres de várias idades com vasos prateados com flores. Remata a colorida procissão um tractor com a aparelhagem, a verdadeira culpada desta música difundida para todos os quadrantes.
Antes do dia terminar cumpro um ritual que todos cumprem: subo ao Discovery Hill Point para assistir ao pôr-do-sol. E ali, sentado num pequeno banco de madeira – um dos actos que justifica a cobrança de bilhete à entrada para o caminho da acesso à colina –, lembro-me do mapa de Emil Forchhammer e de ver nele anotado, muito perto do pagode de Ratana Shwegu – que tenho agora aqui à minha frente – as “ruínas de um forte”. Possivelmente de origem portuguesa, digo eu. Será que dele resta algum vestígio!?
Joaquim Magalhães de Castro