CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 44

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 44

A portuguesinha de Mrauk U

No ilustrado tecto da sala central do pagode Shitthaung também vejo o elefante branco e uns soldados postados junto a dois canhões defronte uma das entradas da muralha. Em vão tento destrinçar rostos europeus neste pedaço de arte naíve que me parece relativamente recente, mas não me admiraria nada que os dois sujeitos de bigode junto aos canhões representassem mercenários portugueses…. Em tempos, vi-os retratados, nas paredes e tectos de um pagode da cidade de Bago, com aqueles típicos capacetes coloniais novecentistas, no fundo, uma adaptação moderna dos morriões do Século XVI, ao que consta usados pela primeira vez pelos espanhóis nas Filipinas, tendo como inspiração os tradicionais “salakots” que, por sua vez, derivam dos mencionados morriões, ou elmos, como também são conhecidos. Se no caso de Bago é o capacete sinal distintivo de um estrangeiro, porque não poderá em Mrauk U o bigode cumprir claramente essa função? A ser verdade, faz todo o sentido.

Enquanto para aqui ando de cabeça virada para o ar esperançado em encontrar algo de semelhante ao que vi num mosteiro de Mandalay e num pagode em Shwebo – nada de pinturas naíves, antes clássicas representações de arte sacra budista na qual se imiscuem anjos alados, elemento tipicamente católico, e soldados estrangeiros embarcados ou cerrando fileiras com as espingardas ao ombro – acabo por deparar, não nas alturas mas bem cá em baixo, no átrio, com o mais óbvio sinal da nossa ancestral permanência nestas terras. Atrás de um pequeno balcão móvel, o “zone fee counter”, destinado ao controlo de bilhetes, mas onde também podemos assinar o livro de registo dos visitantes (acrescento o meu nome ao de dois outros portugueses que por aqui passaram um ano antes), estão uma mulher, um rapazito e uma miúda que é, sem tirar nem pôr, uma genuína portuguesinha de cabelos castanhos com madeixas alouradas. Impressionante como se manteve nela inalterada o código genético ao longo de todos estes séculos, interrompido apenas pelo típico achatamento asiático do nariz… Chama-se Lay Yun, tem treze anos e dois irmãos. Para que não fique intrigada por lhe estar a tirar fotografias com todo este entusiasmo, solto um “you are a portugui” e, de imediato, de dedo apontado para o peito, acrescento: “me too”. Enfim, uma destas inconscientes reacções que nos põe a comunicar em Inglês com pessoas que não entendem esse idioma. E o mais engraçado é que se o fizesse em Português o efeito seria certamente o mesmo.

Para os mais desatentos, curiosa sinalização pictórica volta a lembrar a interdição nestas instalações do uso de calçado, calções, saia curta, meias e “spaghetti blouse”, o que isso quer dizer não sei lá muito bem. No salão principal estão alinhadas centenas de estátuas de Buda, algumas delas no local onde sempre estiveram, outras originárias de sítios arqueológicas ao longo dos anos intervencionados. Nos cantos da sala avisto várias cadeiras e poltronas vazias, mas também as há ocupadas, pelos zeladores do templo sentados daquele jeito asiático, um pé (descalço!) em cima do tampo e o outro pé bem assente no chão, que há muitos anos, regressado à Europa após uma longa estada na Índia, mereceriam o olhar reprovador de alguns dos passageiros de um comboio em Atenas.

Do salão central se pode acessar, via um estreito corredor, ao coração do santuário, minúsculo espaço onde repousa a dourada estátua do Maitreya, o Buda Vivo, e que corresponde ao âmago da estupa central. Dois quadros, parcialmente sobrepostos, reproduzem a afamada ilustração de Wouter Schouten; a versão original, o mais pequeno; e a versão local, o maior. Reparo que a entrada do corredor, protegida por dois toscos devrapalas, ameaçadoras figuras guerreiras bastante comuns em Bali, é profusamente ornamentada com motivos florais em estuque e gesso, umas nada orientais colunas dóricas e coríntias e até um anjo-mesa (como lhe chamam os luso-descendentes de Vure, Solor), comuns nos retábulos das igrejas, e isto, a par com as habituais divindades locais. (Ou será que é um apsará?). Uma vez mais, se quiser ir buscar termo comparativo em Portugal, facilmente o encontro na fachada da já citada igreja de Estombar, cujos ornatos fronteiriços fortemente se assemelham a estes, e bem comuns são os festões dourados das catedrais.

Reproduz Maurice Collis no seu livro um excelente plano do interior de Shitthaung que me ajuda a compreender este sucedâneo de labirinto. Não é o salão central, mas sim três camadas de corredores quadrangulares que circundam a antecâmara, a mais proeminente característica deste imponente templo. Mas antes de me aventurar pelas duas camadas interiores, faço a ronda pela terceira passagem, a mais exterior, que me conduzirá à sala da ordenação e, depois, à sala da meditação, esta com vista privilegiada para o templo vizinho de Htukkanthein, a uns cem metros, e de aspecto ainda mais marcial. Quando lá fora estão não menos que 36 graus centígrados, as refrescantes entranhas deste monumento são um verdadeiro bálsamo, graças aos seus engenhosos sistemas naturais de ventilação. Uma das vantagens deste tipo de património interior (em relação por exemplo a locais como Bagan) é a possibilidade de o podermos apreciar demoradamente sem a aflição provocada pelo braseiro e a sufocante humidade.

Joaquim Magalhães de Castro

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