CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 42

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 42

As traduções do professor Noung Aye

Se quero perceber até que ponto o prestígio português na corte de Arracão se prolongou no tempo, chegou a altura de contactar o professor Noung Aye. Para isso, conto com o valioso e desinteressado contributo do recepcionista do hotel, o nosso já conhecido Nyi Nyi Htun. Seguimos na sua motocicleta pelas sinuosas e poeirentas ruas de Mrauk U, e uma vez mais me invade o pensamento a seguinte questão: “como é que um auto-proclamado farol de civilização se tornou em tão insignificante aglomerado populacional?”.

O professor está no rés-do-chão da sua humilde casa, que serve de escola, e vai a meio de uma aula. Sentam-se em três carteiras corridas de madeira sete raparigas em frente de um quadro de lousa com dois calendários e uma secretária onde repousa um pesado dicionário. Numa estante ao lado, uns quantos livros. É difícil atribuir idade definida a Noung Aye. É certamente mais velho do que aparenta – pele bastante lisa, à excepção da área do pescoço, nem uma única ruga na fronte –, vantagem dos asiáticos em relação aos caucasianos. Finda a lição, vou directo ao assunto. Afinal, o que sabe ele acerca dos portugueses?

Fosse eu mal intencionado, poderia interpretar erradamente o seu instantâneo sorriso, entendendo-o como sinal de desdém, ou até escárnio. Mas como bem sei que entre asiáticos o sorriso representa quase sempre embaraço, percebo logo que daqui não vou conseguir relevantes informações. Vale-me a ajuda de Nyi Nyi Htun, agora no papel de tradutor. Para Noung Aye os portugueses “vieram como mão-de-obra” e o que sabe a respeito deles é o que vem nos livros, referindo, desde logo, o incontornável “Dongmartin”. E como essa “é uma longa história” o melhor a fazer “é ler a versão original”. Dito isto, sobe aos seus aposentos no andar de cima e de lá traz uma resma de fotocópias agrafadas com a seguinte anotação no topo da primeira página: “Journal of the Burma Research Society, Vol. 16, Part. 1, 1926”. Trata-se de um artigo referente a Dom Martinho da autoria de Maurice Collis, com a colaboração do académico birmanês San Shwe Bu. Mostra-me ainda o “The Land of the Great Image” fotocopiado e um livro impresso, segundo me diz, a tradução para o idioma birmanês dessa obra de referência. «– Fui eu que traduzi», informa Noung Aye. Bem, presumo que o tenha feito com a ajuda de algum amigo e inúmeras consultas ao volumoso dicionário.

O seu Inglês limita-se a umas quantas frases, embora perceba muito do que digo. O seu meritório trabalho teve como público-alvo o comum dos arracaneses, desconhecedores de outras idiomas que não o materno, e eu não posso estar mais agradecido ao professor por esse seu contributo; contudo, senti alguma frustração, pois esperava obter dados novos no decorrer da nossa charla. Mas a realidade é o que é, de nada vale dela fugir.

Noung Aye exibe ainda um outro livrinho seu que retrata dois dos heróis do Arracão. Um deles é o nosso Dom Martinho, “porque tentou recuperar a coroa de Arracão, destituindo os usurpadores e restituindo dignidade ao reino” – sem sucesso, como vimos –, e o outro, Khyenbyan, herói da resistência arracanesa contra o domínio colonial britânico, conhecido popularmente como rei Bearing.

Quanto ao bairro de Daingri-pet, nada tem a dizer Noung Aye, mas Nyi Nyi Htun promete que me apresentará a um guia turístico local, conhecedor de toda aquela área (acabaria por não ter essa oportunidade, pois o dito viajara para Rangum). A menção às representações de portugueses no interior dos templos de que me falou o professor Aung deixam Noung Aye pensativo, de cabeça erguida, como se as buscasse no tecto de sua casa, durante uns bons minutos. E depois de uma conversa com Nyi Nyi Htun, que me dá alguma esperança, nada acrescenta. Como para compensar o vazio, o recepcionista menciona então a existência de um edifício de origem portuguesa, o “Portuguese Depot”, a uns quatro quilómetros do centro da cidade, informação que me deixará com água na boca um par de dias, já que deixarei essa deslocação para a parte final da minha estada em Mrauk U.

Lembrando as conversas tidas em Thandwe, à mesa do restaurante da senhora Susu, regresso ao meu tema favorito, e tento saber se há alguém em Mrauk U que reivindique ascendência lusitana. O professor olha-me, atónito, e diz que é impossível traçar a origem das pessoas «pois já passaram quatrocentos anos». Insisto. Mas ele mantém-se na dele, dizendo que «não há qualquer evidência disso». O fenótipo de muita desta gente, não obstante, diz precisamente o contrário. E eu tenho olhos para ver. Jogo, por isso, a última cartada: «talvez o professor tenha algum sangue português…». Noung Aye ri-se, notoriamente agradado com a suposição. Não julguem que estou a ser simpático, faço-o por convicção: aquela tez clara não engana! Já no caso do simpático Nyi Nyi Htun, parece-me bem mais remota a possibilidade. Uma vez mais, eis-me perante gente que não tem a mínima ideia do seu mestiçado património genético. E como é que o haveria de ter, se jamais foi confrontada com a possibilidade? Sinal claríssimo dessa realidade tê-lo-ei, no dia seguinte, aquando da minha visita ao mais famoso monumento de Mrauk U. Mas já lá iremos…

De regresso ao hotel, Nyi Nyi Htun menciona a expressão local “bandué”, à qual é atribuída origem portuguesa. O contexto é o seguinte: quando se pergunta a alguém onde vai a resposta é “bandué”. Será que “bandué” significa “banda”, ou “à outra banda”, com um sentido de lugar incerto?

Joaquim Magalhães de Castro

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