CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXXVII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXXVII

O Pietismo – XI

O Pietismo faz parte de um contexto, de onde surgiu e para o qual contribuiu. Nesse âmbito, uma das relações mais importantes do Pietismo é com o Iluminismo. A relação entre ambos tem sido um problema que suscitou as mais diversas respostas. Alguns declaram que os dois movimentos são absolutamente antitécticos. Outros afirmam que o Iluminismo é mesmo um produto do Pietismo. No entanto, na realidade, a relação entre essas duas tendências não foi de simples antítese, nem de causa e efeito.

Muitas divergências fundamentais existiram entre o Pietismo e o Iluminismo, como nas atitudes opostas em relação à Revelação, à essência da piedade e à Bíblia, por exemplo. Os dois movimentos tiveram pontos em comum, não apenas através de “ilustrados” como Christian Thomasius (1655-1728, filósofo e jurista) – para muitos o precursor do Iluminismo –, Johann Christian Edelmann (1698-1767, teólogo) e Johann Konrad Dippel (1673-1734, físico, químico, teólogo), mas também na oposição comum à ortodoxia luterana, na insistência de ambos nos direitos religiosos do indivíduo e na defesa de um Cristianismo mais “prático”.

Por outro lado, a teoria de que o Iluminismo deriva do Pietismo é desajustada, uma vez que pressupõe que as degenerações e consequências das formas radicais e separatistas do Pietismo, que este rejeitou como elementos estranhos, devem ser consideradas como características do movimento. Essa hipótese também ignora o facto de que as premissas subjacentes ao Iluminismo eram extremamente variadas e muitas delas anteriores ao surgimento do Pietismo. O Iluminismo e o Pietismo devem ser considerados como dois movimentos distintos com um objectivo comum, a destruição do clericalismo, embora divergindo um do outro na sua evolução posterior.

O PIETISMO CONTEMPORÂNEO

O Pietismo, à posteriori, é mais difícil de definir do que o que foi o movimento no Século XVIII. Não é um corpo organizado; os seus grupos, individualizados, não têm um relacionamento mútuo constante, fixo; e um grande número dos seus seguidores não se autodenominam sequer de pietistas. A velha escola pietista de Halle desapareceu. Os Irmãos Morávios formaram uma Igreja separada e abandonaram tão completamente as velhas características pietistas que apenas num sentido muito limitado poderiam agora ser considerados pietistas. Apenas o ramo de Württemberg sobreviveu, mas apesar de manter mais puramente o vínculo com o Pietismo antigo, as limitações territoriais da sua actividade impedem-no de servir como um padrão para determinar a natureza do Pietismo moderno.

A transferência do termo “Pietismo” para o uso que a palavra ganhou nos Séculos XIX e XX mostra que a palavra perdeu a sua definição original de significado. Em muitos casos, o uso moderno da palavra denota ideias em harmonia com o antigo Pietismo; noutros exemplos, há apenas leves indícios de tais afinidades e, noutros ainda, não há absolutamente nenhum ponto em comum. O Pietismo do Século XIX pode, no entanto, ser definido como uma certa tendência do protestantismo alemão que representa o tipo devocional do antigo Pietismo, bem como as suas concepções de vida e a sua atitude perante o mundo, que podem ser até consideradas como uma continuação do antigo Pietismo, ou da sua “escola”. Contudo, apenas as ideias fundamentais do Pietismo primitivo foram mantidas, pois as revoluções nos campos político, social e eclesiástico fizeram com que o movimento assumisse novas formas de actividade e adoptasse novos elementos constituintes.

Esta é já uma fase de desenvolvimento posterior, onde dificilmente se acha um exemplo de mera repetição. Trata-se de um Pietismo que já não promove a vida religiosa através de reuniões de oração, mas encontra uma esfera mais ampla de actividade nas sociedades missionárias, internas ou externas. Uma nota característica notável do período de renascimento do início do Século XIX foi o sentido de comunhão com círculos semelhantes dentro da Igreja Católica, já que as duas igrejas cooperaram nas Sociedades Bíblicas, embora o surgimento do ultramontanismo, após a segunda década do Século XIX, tenha encerrado essa “associação”. Todavia, em alguns círculos pietistas o sentimento de afinidade espiritual com sectores católicos persistiu por muito tempo, tendo exercido alguma influência até aos dias actuais.

Por outro lado, o sincretismo do Pietismo em combinação com a quebra das barreiras denominacionais durante o período do Iluminismo, fez com que o movimento fosse acusado de sectarismo e separatismo no Século XIX, como tinha sido nos cem anos anteriores. Ainda assim, esses “perigos” seriam atenuados pelas relações do “novo Pietismo” com a Igreja Luterana e a ortodoxia, passando por uma transformação essencial. A sua posição unida contra o inimigo comum, o racionalismo, produziu afiliações estreitas que enterrariam o velho conflito.

O Pietismo foi reabsorvido pela Igreja Luterana e a ortodoxia tornou-se suscetível ao pensamento e sentimento pietistas. Esta mudança no Pietismo foi essencialmente auxiliada pelo facto de que a Igreja Luterana dava cada vez mais o devido reconhecimento à benevolência prática, principalmente nas missões. No entanto, uma vez que o Pietismo deu atenção especial desde o início a esse espírito de missão, as atitudes alteradas da ortodoxia em relação ao movimento foram um tributo notório à sua capacidade de reter o essencial na sua posição missionária. À medida que a Igreja desenvolveu um interesse crescente em missões no exterior, como no interior da Alemanha, assistiu-se a um aumento marcante na influência do Pietismo e na confiança demonstrada nos círculos ortodoxos em relação a ele.

O Pietismo tornou-se num fenómeno com muitos elementos heterogéneos, com variações regionais e temporais, diferenciando-se, por exemplo, entre o campo e a cidade. Além do trabalho missionário, o Pietismo foi um factor importante no renascimento religioso na Alemanha nos alvores do Século XIX, embora não fosse a única causa desse movimento. A ampliação da sua esfera de actividade e a aproximação com a Igreja do Estado, fez com que o Pietismo galgasse os limites dos conventículos. Por outro lado, essa tendência inata para os pequenos círculos, que o isolam de qualquer compreensão da riqueza da vida intelectual, nacional e cultural, impediu-o de ser um grande movimento popular. Também se sectarizou, de certa forma, ou cedeu à formação de facções, além de mostrar também intolerância, por vezes, em relação a opiniões diferentes. O Pietismo estava para durar, como está, aliás, nos tempos de hoje, com maior influência do que se possa imaginar.

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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