A audiência com o rei
É pouco provável que a audiência com Thiri Thudhamma se tenha realizado naquele salão principal que tanto impressionara Manrique, mas sim numa sala menor. Como era da tradição asiática, o monarca, na sua condição semidivina, apenas mostrava o rosto através de uma pequena janela ocultando o resto do corpo atrás de um reposteiro. E quando tal acontecia, devia o súbdito fazer de imediato o “shiko”, prostração correspondente ao “kotow” chinês. Acompanharia este gesto, o nosso agostinho, com as frases mais graciosas que pode encontrar, em Urdu, a língua de comunicação. Thudhamma mostrou satisfação por rever o português e quis saber da festividade acabada de ocorrer no templo recentemente erguido pelo estrangeiro para honrar “o seu Deus”. Manrique apressou-se a dizer-lhe que Esse era também o “Deus de Sua Majestade” e que todos os dias rezava pela sua saúde, “tanto do corpo como do espírito”. O frade, como bom cristão, assumia que Deus-Pai, “como Senhor do céu e da terra”, era necessariamente também o senhor do rei pagão, fosse ele crente ou não.
Já no entender de Thiri Thudhamma tudo se passava de maneira diferente. O “deus cristão” mais não era do que um ente sobrenatural semelhante aos do panteão hindu, e como tal adorava Buda e almejava atingir o nirvana. Se por um lado a espiritualidade como caminho para a verdade era ponto de vista comum ao eclesiástico e ao rei, mantinha-se nas antípodas a terminologia por ambos usada, pelo que a conversa mantida não passava de uma conversa de surdos. No entender de Manrique, curvar-se diante da imagem de uma divindade era simples idolatria, pois um ídolo não poderia “valer mais do que o material de que foi feito”. Thiri Thudhamma considerava-se o maior rei budista do mundo – o guardião da Grande Imagem (a estátua de Buda) – não podendo por isso, como nos diz Maurice Collis, “dar ao frade uma resposta estritamente ortodoxa, e em vez disso fez o que muitos reis orientais gostavam de fazer quando um padre estrangeiro visitava a sua corte”.
Convidou-o a discutir o assunto com o monge budista sentado perto dele, “provavelmente o capelão real”. Este, de túnica amarela, cabeça rapada e pés descalços, certamente satisfeito por poder expressar o que realmente pensava acerca dos representantes daquela religião estranha aos usos e costumes do País, começou por repreender os padres católicos (é provável que tivesse encontrado alguns dos missionários que precederam Manrique, pois havia agostinhos no Arracão desde 1621) pela sua falta de respeito para com o Gautama Buda e a intolerância manifestada em relação ao Budismo em geral. Como ousavam esses forasteiros declarar que a sua fé era o único caminho para a salvação!? Replicou Manrique que se não acreditasse piamente no que afirmava não se tinha feito ao mundo, ele e tantos dos seus companheiros, deixando para trás a família e os amigos, pronto “a salvar almas” nos locais mais distantes do planeta, enfrentando todo o tipo de sacrifícios e perigos. Mostrou-se o capelão estupefacto com a posição do português, considerando-a imprópria de uma pessoa inteligente. E como não ousava colar-lhe o rótulo da estupidez não teve outra alternativa senão atribuir aquele zelo missionário a um qualquer motivo oculto…
A insinuação não passou despercebida ao rei que, com um olhar, travou o capelão, divergindo este a conversa para o tema da reencarnação e o facto desta permitir que as pessoas se tornassem melhores a cada nova existência até se conseguirem livrar do vicioso ciclo de sofrimento, atingindo o estado do Iluminado, ou seja, a felicidade completa. Para Manrique nada daquilo fazia sentido; faltava-lhe a estratégia jesuíta que tanta celeuma causaria no seio da Igreja Católica no rescaldo da acalentada “Questão dos Ritos”…
Nas confissões que administrara, Manrique inteirara-se de quão tolerantes eram os cristãos locais para com o Budismo pois tinham introduzido muitos dos seus rituais no decorrer da “Santa Missa”. Nessa época admitir a existência de uma qualquer verdade num credo pagão era em si uma heresia, daí que Manrique se recusasse a continuar a ouvir o monge. «A sua exposição não tem qualquer sentido», comentava ele, «mas uma coisa é clara: se continuar a acreditar nas falsas declarações do seu Buda, irá após a morte para o inferno, onde ele mora». É pouco provável que o nosso frade se tivesse pronunciado nestes termos; não terá sido tão ousado e assertivo… Afinal, estava perante o homem mais poderoso daquela imensa região, senhor da vida e da morte que com um simples capricho podia deitar tudo a perder. A jogar em casa, o monge não quis ficar calado; porém, Thiri Thudhamma, vendo que daquele limão mais nenhum sumo se poderia espremer, condescendentemente aconselhou Manrique a ir descansar pois – dizia – não estava ainda inteiramente recuperado… Disse-lhe ainda que o convidaria mais tarde a prosseguir o debate teológico com “o arqui-abade da Ordem, o Shitthaung Hpongri”, eclesiástico de maior gabarito que o actual oponente. E dizendo isso, “com dignidade e uma educação inimitáveis”, deu por terminada a audiência, tendo sido a cortina do reposteiro corrida e o rosto do monarca ocultado.
Joaquim Magalhães de Castro