A chegada a Bandel
A minha demanda prossegue inspirada pela sabia frase de Santo Agostinho: “ter fé é assinar uma folha em branco e deixar que Deus nela escreva o que quiser”. Durante um bom par de horas seguimos no leito central antes de flectirmos para a direita e entrarmos num dos inúmeros riachos laterais, progredindo depois em locomoção de cobra: ondeando da esquerda para a direita e da direita para a esquerda.
Sonhador, ponho-me a fazer o filme do que aqui se terá passado há quase cinco séculos. Recuo a 17 de Fevereiro de 1534 e visualizo um grupo de aventureiros portugueses, atraídos pelas riquezas de Mrauk U, subindo por estes esteiros acima fitados no saque da cidade. De acordo com as crónicas arracanesas, tratava-se de “um pequeno mas bem armado exército de mercenários” que a 22 de Fevereiro chegou “a Kandaza, a 26 quilómetros de Mrauk U”. E teriam conseguido o propósito não fora o engenho dos arracaneses que escondidos nos estreitos laterais do Kaladan lhes fizeram uma espera com navios bem atestados de pólvora, apanhando-os completamente desprevenidos. Seriam certamente embarcações do tamanho daquelas que aqui transportam as pessoas de aldeia em aldeia pondo em debandada bandos de íbis brilhantes, esses apreciadores de grãos de arroz que não perdem uma oportunidade de repousar nas plácidas águas.
O rio é a única via para chegar aos povoados ribeirinhos abrigados pela copa dos abundantes sagueiros e coqueiros. Podemos agora distingui-los com clareza pois as margens estão mais próximas. Segundo os anais arracaneses, os portugueses chegaram a atacar Mrauk U, “a 28 de Fevereiro”, tendo o próprio rei liderado a defesa, mas não é feita qualquer referência a dispositivos pirotécnicos. Insistiriam os soldados da fortuna na sua demanda ao longo de uma semana, porém, reforçada flotilha arracanesa obrigá-los-ia a recuar definitivamente até ao mar. Mas isso foi a 7 de Março e nós estamos num mês de Fevereiro quase cinco séculos depois e com os cones de montanhas visíveis a levante (há-os ornamentados a dourado pelas cúpulas das varelas) e aglomerados de casas em palafitas (seria errado classificá-las de aldeias) a poente. Na altura das chuvas terão acesso directo ao rio que, livre de qualquer impedimento topográfico, se estenderá então umas boas centenas de metros terra adentro. Aqui e ali grupos de dois ou três búfalos presenciam, curiosos, o nosso lento avanço.
O à vontade com que os alevantados aqui chegaram pressupõe apurado conhecimento do sistema fluvial do Kaladan e do Lemro, tarefa nada fácil, garanto-vos. Provavelmente alguns deles tinham em tempos visitado Mrauk U, quiçá diversas vezes. E até é bem possível que do lado arracanês pontuassem compatriotas seus, congéneres no ofício, pois o Arracão não era excepção ao que se passava em toda aquela região… Sabe-se lá se não terá partido de um deles a estratégia dos barcos-incendiários? Artifícios com pólvora não era prática corrente entre os povos do Sudeste Asiático daquela época… Falta-nos aqui, é claro, um equivalente a Fernão Mendes Pinto capaz de nos dar testemunhos mais palpáveis já que os ingredientes são exactamente os mesmos de alguns dos episódios descritos na admirável “Peregrinação”.
A tentativa de ataque português, assim como as precedentes incursões birmanesas, apressariam o rei Min Bin, alicerçador da nação arracanesa, a reforçar o sistema defensivo da cidade. E como cedo se apercebeu que o “problema português” estava para ficar – aprimorando a máxima universal “se não podes com eles, junta-te a eles” para “se não podes com eles, compra-os”, esta última tão em voga hoje em dia e com resultados satisfatórios – decidiu contratar em grande número mercenários dessa nação. Não faltou quem se alistasse e pôde então Min Bin com a tropa engrossada em género e qualidade restaurar o controlo sobre o litoral e continuar a manter a soberania do reino ameaçado por novos ataques birmaneses.
No que confere à ousadia lusitana, ocorre-me a seguinte frase de São Tomás de Aquino: “se a meta principal de um capitão fosse preservar o seu barco, ele o conservaria no porto para sempre”.
O ronronar do motor traz-me de novo à realidade deste barco-camioneta com um ramo de flores de plástico na proa como amuleto e convés verde a condizer com uma paisagem que vai paulatinamente adoptando essa cor. Dos esteiros saem e entram agora coloridas embarcações (o azul predomina), e da nossa apeam-se alguns dos passageiros. Ou melhor, vêm-nos buscar compridas pirogas, e uma vez completo o transbordo rumam a outros esteiros, à esquerda e à direita, que isto é um nunca mais acabar de subdivisões fluviais.
O zimbório de certo pagode e um barco para turistas junto ao embarcadouro privado do Mrauk U Princess Resort, o mais eco-chique e luxuoso das alojamentos locais, alerta-nos para a proximidade do destino final. Aliás, já se avista daqui o cais de Bandel, bem mais modesto do que eu imaginava. Do lado esquerdo, presumo, temos Daingri-pet, o “bairro dos portugueses”, totalmente camuflado por espessa vegetação. Seria nos seus tempos áureos um bairro de gente distinta habitando casas de madeira sobre estacas com telha romana, alpendres e persianas nas janelas, pois assim nos é representada na incontornável ilustração de “Wouter Schouten”.
Curiosamente, de entre o casario (de novo o azul como cor predominante) não nos é possível identificar a igreja dos Agostinhos, nessa altura já edificada. Elefantes com os respectivos palaquins no dorso e camelos ricamente adornados, ambos guardados por escravos negros num grande terreiro, espécie de parque de estacionamento das luxuosas viaturas da época, é um claro sinal da opulência dos estrangeiros que ali viviam. A “destoar”, um simples carro de bois carregado qual Fiat Uno ousando disputar lugar na montra de uma loja-expositora de Lamborghinis e Maseratis.
Joaquim Magalhães de Castro