CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXVI

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXVI

Os Quakers – XIII

Encerramos hoje estas páginas sobre os Quakers, ou a Sociedade dos Amigos. George Fox, que para muitos é considerado “o fundador”, afirmava: «Há um Cristo Jesus em ti, que pode falar sobre a tua condição». Os Quakers contemporâneos costumam designar esse Ser interior e eterno como “o Deus em todos”. O fundamento da crença quaker reside, de facto, na santidade de toda a criação.

Os quakers persistem neste ideal no Século XXI, no testemunho dessa crença. Afirmam-na de diversas formas, contra o racismo, na construção da comunidade, na defesa da igualdade, da integridade, do amor, propalando optimismo, pacificação do mundo e justiça social. Estes ideias, revelam os quakers, estão tão interligados como o sistema ecológico de um pomar. Pode-se descrever esse pomar, afirmam, a partir de qualquer lado, mas a escolha que se fizer, arbitrariamente, não se deve sobrepor a qualquer outra que se tivesse feito. Pois cada testemunho, dizem os quakers, merece a sua própria contemplação e com a maior seriedade. Qualquer ideal é nobre e vale a pena lutar por ele, sem grau, nem diferença, nem hierarquia.

Jesus assim resumiu a Lei de Moisés: «Deverás amar o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com toda a tua mente, e o teu próximo como a ti mesmo». Os quakers defendem a concretização deste objectivo. Em 1661, mais de cinco anos antes de supostamente ter dito a William Penn para “carregar a sua espada o quanto pudesse” e apenas nove anos depois a sua busca pessoal se ter tornado um movimento, Fox escreveu um ensaio intitulado “A linha de retidão e justiça para todos os comerciantes e outros”. O fundamento do texto era a referida frase de Jesus, no sentido de que todos tratassem cada ser humano com toda a justiça. Nesse ensaio, Fox reafirmou a sacralidade dessa igualdade em tudo. Mas as suas ideias, se muitos por elas seriam atraídos, muitos também sofreram por elas, no primeiro século da existência da Sociedade dos Amigos, tanto na Inglaterra como nas Américas. As crenças eram ainda motivo de segregação e sofrimento.

JUSTIÇA SOCIAL

Desde as origens dos quakers que o compromisso com a justiça social era um imperativo, um requisito para se ser um Amigo, seja em tempo de guerra, seja em tempo de paz, onde quer que seja. Todavia, as perspectivas pessoais sobre a justiça mudam de acordo com o grau de conforto de cada um. Por isso, um quaker do Século XVIII, John Woolman, proferiu o seguinte: «A opressão levada ao extremo pode parecer terrível, mas a opressão na forma mais refinada não deixa de ser opressão, e onde o seu menor grau seja valorizado, mais forte e extensa ela se torna». Sem justiça social não há paz. Por isso, os quakers actuam como “lobby” junto de Governos, mas também de vizinhos, parentes e perante si próprios, em casa, em defesa da justiça social.

Nesta luta encaixa-se outra bandeira quaker que cumpre salientar: os direitos da criança. Nas culturas puritana e calvinista, predominantes na Grã-Bretanha e na América do Século XVII, acreditava-se que as crianças nasciam corrompidas pelo “pecado original”. Os quakers rejeitaram essa doutrina e um deles, Robert Barclay, considerou essa ideia como “uma barbárie inventada e anti-bíblica”. Os quakers consideravam, por seu turno, as crianças como “inocentes” desde o nascimento até que cometessem conscientemente um acto errado. Esta concepção ainda se mantém, articulada à ideia de que se a Luz Divina está dentro de cada pessoa, também está, obviamente, nas crianças, que têm um relacionamento directo com Deus, sem necessidade de intermediação, como os adultos têm.

Esta crença confere às crianças quaker um papel especial nas Reuniões de Adoração. Até ao Acto de Tolerância (1689), muitos quakers eram perseguidos devido às suas crenças. Por exemplo, todos os adultos numa reunião podiam ser presos ao mesmo tempo. Mas essa adoração não terminava com a ausência dos adultos, pois os seus filhos podiam-na continuar, muitas vezes reunindo-se do lado de fora de uma casa de reunião, trancada e com grades. Muitas vezes, essas reuniões eram interrompidas pelos soldados, que levavam as crianças mais velhas, que eram espancadas, mandando as mais novas para casa.

Em Bristol, em 1682, onze meninos e quatro meninas com idades entre dez e doze anos foram presos durante a noite e ameaçados com um chicote de nove fios, a menos que prometessem não comparecer em mais reuniões. Mas as crianças recusaram veementemente cumprir essa ordem, em Bristol, como em Reading ou Cambridge, continuando as reuniões até à libertação dos seus pais.

Os quakers acreditaram desde o início que a educação poderia nutrir “a [educação] de Deus” em todos, pelo que deveria estar disponível para todos, de igual modo e sem distinção de género. No começo, essa educação começava em casa, mas depois fundaram-se, até hoje, um sem número de escolas: uma das primeiras foi fundada por William Penn, a Charter School, na Pensilvânia, em 1689. Os quakers recusaram sempre as punições severas e castigos corporais, usando mais a razão e procurando alternativas.

A preocupação com a educação infantil andou de mãos dadas com a rejeição da exploração de crianças no trabalho. John Cadbury (1801-1889), por exemplo, liderou a campanha contra o uso de crianças como limpadores de chaminés, dada a sua pequena estatura. Um século depois, em 1971, o American Friends Service Committee (AFSC) levantou uma série de questões (e denunciou) sobre o uso de trabalho infantil em regiões agrícolas dos Estados Unidos. Hoje, os quakers fazem campanha pela eliminação do que consideram a pior forma de trabalho infantil – o recrutamento de crianças-soldados. O trabalho humanitário dos quakers reconhece também que as crianças costumam ser os seres humanos que mais sofrem durante as guerras.

Quakers que trabalharam na Alemanha durante e após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) descreveram as crianças como desesperadamente desnutridas, sofrendo de doenças como raquitismo. Em 1921, o seu programa de alimentação na Alemanha, conhecido como “Quäkerspeisung” (alimentação dos quakers), conseguiu fornecer comida a cerca de um milhão de crianças por dia. Mais tarde, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os quakers organizaram o “Kindertransport” (transporte de crianças), que resgatou dez mil crianças que, de outra forma, poderiam ter morrido em campos de concentração. Depois, em muitos outros cenários, os quakers têm actuado em defesa das crianças (no Vietname, por exemplo), não esquecendo os filhos de mulheres presas, imigrantes e refugiados.

Os quakers, uma denominação tão estranha, mas lidando com problemas tão reais, desde há mais de trezentos anos!

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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