CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 19

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 19

sakkuda senhora Susu

No lóbi do Seasons, o principal hotel da aldeia, que serve de ponto zero da praia de Ngapali e onde as pensões se atropelam – apesar da concorrência com preços demasiado altos para aquilo que se oferece, típica dor de crescimento de um sítio turístico –, deparo com Raffaele Vazarro, sexagenário transalpino que chegou a Myanmar integrado num grupo organizado de turistas e a meio da viagem decidiu seguir caminho por conta própria. O problema é que Raffaele não fala uma palavra de Inglês. Numa terra onde nem os empregados de hotel conhecem os rudimentos desse idioma, isso não parece ser um problema, mas o italiano precisa urgentemente de comunicar com a Nathael, indonésia cristã de Medan, completamente desenquadrada do cenário, gerente do Seasons, onde Raffaele está hospedado, e eu presto-me a servir de intérprete valendo-me do meu Italiano de pacotilha.

Lá fora chega-nos de quando em vez o som rouco dos gastos motores das Ford e das Dodge, relíquias do tempo da Segunda Guerra Mundial que a necessidade obrigou a um redobrado aguçar de engenho. Transformaram-nas em mini-autocarros para transporte de visitantes de e para o aeroporto; e como se aproxima o Ano Novo Lunar constato uma clara predominância dos filhos dessa nova máquina de fazer turistas chamada China.

Aos fins-de-semana o ponto zero anima, e por isso não me espantam nada os dezasseis autocarros estacionados junto à escola budista com a parte posterior aberta de par em par para arrefecer os motores. Estes “meninos” palmilharam já centenas de milhares de quilómetros e esta é claramente uma excursão de pobres. Mais uma, não fosse a bandeira do Vaticano colocada na parte da frente de todos os veículos. Ainda olhei duas vezes, pensando tratar-se de um estandarte budista – o Budismo é useiro e vezeiro em questões de amarelos e brancos – mas não: este é mesmo o símbolo oficial da Cidade do Vaticano. As chaves cruzadas de Pedro, uma de ouro e a outra de prata, e a tiara papal com a faixa branca não deixam quaisquer dúvidas. Interessante esta forma de se identificarem os católicos locais.

Será pródigo em encontros, o dia: de bicicleta se apresenta Khin, estudante de Inglês de conversa afável. Diz que desde os bancos da escola sabe da chegada dos portugueses à sua terra, mas agora o seu interesse parece residir num determinado personagem da cultura ocidental. «Na próxima vez, se puder, traga-me um livro da Rosamund P… (qualquer coisa)», pede enquanto escreve o endereço numa folha de papel. Confesso-lhe não conhecer a dita e ele aconselha-me a consultar o doutor Google, «pois há aí muitos filmes dela». Filmes!? Mas afinal não é escritora, a tal Rosamund? O «gosto muito de ler, sobretudo os filmes de Rosamund» que Khin despeja de seguida esclarece que há aqui um problema de comunicação lexical e terei de esperar pela noite para o espaço cibernético me elucidar sobre a misteriosa Rosamund, que num primeiro momento julgo ser a bela apaixonada de Johnny English, a actriz Rosamund Pike, mas que confirmo depois tratar-se da consagrada e recentemente falecida romancista Rosamunde Pilcher. Faz mais sentido, tendo em conta o ar monástico de Khin, mais consentâneo com poetas e pensadores do que com sedutoras actrizes…

Revelo a Raffaele os segredos dos pratos do Ocean Pearl e ele – nitidamente um náufrago pronto a agarrar-se a uma qualquer tábua de salvação, que isto de aventurar-se a solo deixando os pares de excursão em suspenso tem muito que se lhe diga – adere de imediato. A patroa Susu, talvez porque lhe angarie um novo freguês, redobra a vontade de ajudar. Sempre que posso desvio a conversa para o lado da História, tentando desencantar episódios da Sandoway antiga. Assim, do nada, Susu menciona o mítico Nga Zinga, ou seja, Filipe de Brito e Nicote, e um certo “father Mendez”. Será que se refere a Mendes Pinto? Arrisco com ela o jogo da identificação de palavras, e desse modo apercebo-me de alguns termos portugueses presentes na língua arracanesa – nanathee (ananás); setthar (soldado); capatin (capitão); sakku (saco); loongshoan (lancha); ballong (bola) – embora por aqui o pão-de-ló já se tenha anglicizado: é o cake mong.

É aflitivo tentar interpretar o Inglês desta gente. Faz lembrar o de certas hospedeiras de bordo quando lêem as regras de segurança. Percebe-se de imediato que não fazem a mínima ideia do que estão a dizer. Também os tailandeses, apesar de décadas de turismo em massa, continuam a expressar-se num Inglês terrivelmente macarrónico. Tão pouco ajuda a forma como escrevem, com aquele caligrafia arredondada e as letras que se confundem com os números, ajudando a criar alguns contratempos e equívocos na comunicação.

Antes de adormecer, numa das minhas consultas topográficas na Internet, constato que no Sul do Arracão, onde a cordilheira termina e se abre em leque o delta, há toda uma zona arborizada desprovida de presença humana. Deparo com um “mata” que não deixa dúvidas. “Mata” identifica, de facto, uma zona de matagal e é mais um dos topónimos – a acrescentar aos óbvios “Negrais” (nome de cabo e de um ilha) e “Aguada” (assim designam o farol que assinala o famosíssimo Cabo Negrais) – que miraculosamente sobreviveram às apropriações anglo-saxónicos do período britânico e à uniformização levada a cabo pelo poder oficial birmanês.

Joaquim Magalhães de Castro

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