Paz e guerra em terra budista
Nestas minhas deambulações constato com agradável surpresa a presença regular de abrigos de madeira à sombra de acácias de madeira vermelha, árvore multiusos fornecedora de lenha, carvão, material de construção, de um popular verniz e a base de umas quantas mezinhas para sanar grande variedade de doenças, incluindo distúrbios gastrointestinais e respiratórios. É planta de tal modo disseminada que a podemos considerar um dos ex-libris da paisagem birmanesa.
Nos referidos abrigos há sempre um tabuado liso e um pote de cerâmica com água fresca à disposição de quem passa. Ancestral o hábito, budista, verdadeira dádiva para o viandante, desgraçadamente caído em desuso, muito por culpa das gananciosas multinacionais sugadoras desse bem essencial que é já mais caro do que gasolina e vai servindo de arma de arremesso nas relações internacionais. Tenho o costume de evitar a compra de água engarrafada, mas quando o faço opto pelas marcas locais que ainda não foram engolidas pelas nestlés, coca-colas, pepsis, danones, enfim, pelos suspeitos de costume. Outra usança budista: os cortejos matinais e vespertinos de jovens monges descalços e com um pote de metal no regaço. Desse modo buscam o alimento diário apelando à caridade da população. Séquitos do género são bastante comuns e às vezes roçam a bizarria, como aquele que presencio protagonizado por jovens motociclistas, dois a dois, vestidos de igual modo e com o estandarte arco-íris comum entre budistas e nativos andinos e que o movimento LGBT oportunisticamente adoptou.
Com tantas manifestações de espiritualidade pergunto-me como foi possível gente tão pacífica cometer atrozes actos como aqueles que transparecem nas páginas da obra de Fernão Mendes Pinto? Ou se calhar não me deveria espantar; basta lembrar os monges que ainda recentemente incitaram o seu povo ao ódio e à violência contra os rohingyas muçulmanos… Apesar da crueldade manifestada em vida, Tabin Shwehti entrou no domínio das divindades e é hoje um dos 37 nats (espíritos) adorados no País. Retratam-no sentado de pernas cruzadas num trono em traje completo e com duas espadas na mão esquerda e a mão direita em cima do joelho. Malgrado a aura espiritual, Tabin Shwehti é lembrado sobretudo pelas suas façanhas militares, se bem que secundaríssimas se comparadas com as de Bayin Naung, esse sim um dos três grandes monarcas da nação birmanesa. Perpetuam o nome de ambos a música e a literatura. Um dos primeiros romances modernos em língua birmanesa, datado do início do século XX, por exemplo, tem como pano de fundo o império do “rei Bramá”.
Com o ataque a Pegu e a Martavão, Tabin Shwehti lograria matar dois coelhos de uma só cajadada: apoderara-se dos apetecidos portos e tinha agora ao seu dispor profissionalizado contingente militar que doravante o ajudaria a conquistar os territórios a norte, a oeste e a leste. Habitadas pelos povos shan, unidos em confederação, as montanhas setentrionais foram o próximo alvo de Tabin Shwehti. Nessas campanhas, e noutras mais a leste, em Lam Nang e Lan Xang, actual Norte da Tailândia e Laos, respectivamente, sempre o acompanharam soldados da fortuna e conselheiros militares portugueses. Figuras anónimas, entretanto encaixadas nas sociedade locais, que tiveram significativo desempenho em todo o Sudeste Asiático, facto inigualável por gente de qualquer outra nação. É um facto.
Infelizmente só tivemos um Fernão Mendes Pinto, caso contrário com quantos fascinantes relatos de épicas jornadas e operações em acidentadas e desconhecidas geografias nos poderíamos deleitar? A célebre “Viagem ao Calaminhão” descrita por Mendes Pinto corresponde ao envio da embaixada birmanesa à corte do rei Photisarath com uma oferta de aliança, proposta, de resto, declinada pelo monarca laocence.
Com a confiança redobrada após as ofensivas no Arracão e nas montanhas do norte, Tabin Shwehti empenhar-se-á pessoalmente na conquista do Sião, cujo exército avançara entretanto até ao porto de Tenassarim. Em 1548, reunida em Martavão uma força de doze mil soldados, onde entravam quatro centenas de mercenários portugueses liderados por um certo Diogo Soares de Mello, Tabin dá ordem de avanço. A par das armas convencionais – espadas, lanças, arco e flechas – as armas de fogo introduzidas décadas antes pelos portugueses tinham-se tornado cada vez mais sofisticadas. A rota de invasão seguiu a portela dos Três Pagodes até Kanchanaburi e teve como destino final Aiutaia, capital dos siameses. Muitos dos mercenários funcionavam sobretudo na guerra defensiva, isto é, na protecção do rei e seus domínios. A cidade de Aiutaia, por exemplo, só não caiu em mãos birmanesas devido à artilharia e ao poder de fogo dessa gente. Fernão Mendes Pinto, uma vez mais, na sua deliciosa narrativa, dá-nos conta do dilema enfrentado por compatriotas em campos opostos da batalha. Houve situações solucionadas sem a necessidade de conflito armado, precisamente porque aqueles não desejavam combater-se.
Joaquim Magalhães de Castro