CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLVI

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLVI

Os Huteritas – II

Quase desapareceram. Mas não foi isso que aconteceu. Os Huteritas persistem, principalmente no Oeste do Canadá e nas Grandes Planícies dos Estados Unidos, bem como algumas comunidades na Europa. Como Anabaptistas que são, defendem a não-resistência e o pacifismo, estribos da sua espiritualidade que teimam em manter inalterada.

Um princípio básico da sociedade huterita sempre foi o pacifismo absoluto, que proíbe os seus membros de se envolverem em actividades militares, de estarem inseridos em hierarquias fora das suas comunidades, de usarem uniformes formalmente, como soldados ou polícias, ou até de pagarem impostos de guerra. Como às outras fés anabaptistas, esta defesa intransigente desses princípios valeu-lhes a expulsão ou perseguição nos vários países em que viveram. Como vimos, floresceram na Morávia, ao longo da segunda metade do século XVI, até que se deu a perseguição causada pela ocupação austríaca daquela região, forçando-os mais uma vez a emigrar, primeiro para a Transilvânia, na actual Roménia, e depois, no século XVIII, para a Ucrânia, então sob o jugo do império russo.

Alguns huteritas converteram-se ao Catolicismo e mantiveram uma identidade étnica na Eslováquia, denominando-se de “habans” até ao século XIX. No fim da Segunda Guerra Mundial, os “habans” praticamente tinham desaparecido. Na Ucrânia, entretanto, os huteritas gozavam de relativa prosperidade, embora o seu modo distinto de vida comunitária fosse influenciado pelos vizinhos menonitas da Rússia. Mas nem tudo permaneceu como se desejava e a situação transtornou-se. O império russo, depois de meados do século XIX, aprovaria uma nova lei sobre a obrigação de prestação de serviço militar obrigatório, trazendo novamente pressão e dificuldades aos huteritas.

IDENTIDADE PACIFISTA

Depois de enviarem alguns fiéis huteritas para a América do Norte em 1873, como “pioneiros”, ou exploradores, juntamente com uma delegação menonita, comprovaram a possibilidade de serem bem acolhidos e poderem viver o seu ideal de vida naquela região virgem, maioritariamente desabitada e a necessitar de colonização. Era quase como uma terra de promissão para todos os anabaptistas, mas não só, em diáspora. Assim, depois da já recordada grande migração para a Rússia ocorrida depois de 1770, outra migração maciça de huteritas viria a ocorrer entre 1874 e 1879, cerca de um século depois.

Em três vagas, dezoito mil huteritas partiram para o Novo Mundo em resposta à nova lei de serviço militar da Rússia, onde os Romanoff se envolviam numa escalada militarista e recrutavam massivamente, sem olhar a credos, etnias ou origens. As três vagas, ou grupos, de huteritas receberam a sua denominação em homenagem aos líderes de cada uma, ou sejam, os Schmiedeleut, os Dariusleut e os Lehrerleut, sendo que “leute” é uma palavra alemã para “grupo de pessoas”, ou “povo”, sinónimo de “volk”. Estes três primeiros grupos estabeleceram-se inicialmente no território do Dakota, nas Grandes Planícies, não longe do Canadá, em tudo idêntico às estepes russas e ucranianas. Mais tarde, as colónias de Dariusleut estabeleceram-se na região central do Montana, também junto à fronteira canadiana, mas mais montanhoso. Cada grupo pôde assim restabelecer, tranquilamente, o estilo de vida huterita tradicional, ou seja, comunitário.

A América do Norte tornou-se no lar de muitas comunidades religiosas, como ainda hoje é. Os huteritas são um desses grupos, distinguindo-se pela forte crença de que viver em comunidade e separados daquilo que eles designam como “mundo”, será a sua garantia de salvação, do seu lugar no céu.

Caro leitor, se quiser experienciar a forma de vida huterita, tente imaginar-se a viver a vida inteira com as mesmas cem pessoas, sempre, todos os dias, no alcance do seu olhar e dos seus movimentos, a falar e a rezar numa forma dialectal germânica ou um Inglês com forte sotaque alemão. Imagine-se a viver com a sua mãe, pai, irmãos, irmãs, primos, tios e tias, avós e parentes distantes, todos os dias da sua vida. Esta é a base da vida social huterita, fortemente comunitária e unida. Esta é a forma de vida de qualquer comunidade huterita no Canadá, nos Estados Unidos, onde quer que existam e afirmem o seu sentimento religioso anabaptista herdado de Jakob Hutter, desde o longínquo século XVI, mesmo nas mais remotas paisagens. Existem quinhentas colónias semelhantes no Canadá e nos Estados Unidos, abrigando cinquenta mil huteritas. Os huteritas, com efeito, oferecem uma comunidade “do berço ao túmulo”, focada na adoração a Deus e na ajuda aos parentes e vizinhos.

Em relação à língua, como já adiantámos, os huteritas falam entre si um dialecto alemão da Caríntia, originário da província homónima na Áustria, que também se denomina de forma oficiosa de Hutterisch. Este idioma é falado diariamente, no quotidiano e na oração. No entanto, é cada vez mais generosamente borrifado com palavras da língua inglesa, o que muitos huteritas lastimam. Mas existem inúmeras coisas do quotidiano moderno para as quais não há correspondência em Hutterisch. Nessa lacuna incluem-se os fundamentais modernos equipamentos agrícolas, várias peças e ferramentas mecânicas, ingredientes de cozinha, medicamentos e alguns utensílios domésticos. Para estes conceitos, é o Inglês que é usado.

Pode-se dizer que todos os huteritas falam Hutterisch, embora haja variáveis dialectais e vários “falares”, termos próprios ou nuances linguísticas, que variam de colónia para colónia. A variação é ainda mais evidente entre os três grupos, Schmiedenleut, Dariusleut e Lehrerleut. Por exemplo, há palavras que só são usadas num grupo e ininteligíveis para os outros. Histórias e evoluções um pouco diferentes, ou estratégias de preservação de identidade? Não se sabe, mas também subsiste a pergunta: Acrescentaram-se, mantiveram-se ou os “outros” grupos perderam certas palavras? A história é a mesma. Mas não se sabe o porquê destas diferenças.

O Hutterisch é essencialmente uma tradição da linguagem oral. Não possui um sistema de ortografia padrão, podendo tornar-se de difícil leitura quando se tenta escrever, com uma mistura confusa e até divertida de sons em Hutterisch e em Inglês, além de mudanças de dialectos. Escrever é assim um desafio, quase uma encriptação, de difícil decifração.

Se o isolamento afasta os huteritas do “mundo”, se se tornam em comunidades longínquas e remotas, a língua e as suas variedades afasta-os ainda mais. Não fossem os acrescentos ou recorrências em Inglês, ou o uso deste fora das comunidades, e pouco se saberia deste grupo anabaptista. É o que vamos tentar decifrar na próxima semana!

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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