As Signare de Rio Fresco
Para consumo local, camadas de pedaços de peixe a secar, em cestos de vime, em bidões ou simplesmente disseminados pelo areal. Um estendal não muito bonito de se ver exalando um fedor insuportável. Será que se destinava a ser comercializado? Quem teria a coragem de preparar o almoço com uma mixórdia daquelas?
A praia era utilizada também para a prática do futebol – com aliados e oponentes devidamente equipados – e para os muçulmanos enterrarem os seus mortos. Logo após ter presenciado a insólita imagem de um navio literalmente afundado na areia, deparei com um cemitério deveras singular, pois os intervalos entre as tumbas, cuidadosamente cobertas por redes de pesca, tanto eram de cimento como de chapa de zinco, não sendo de descurar o uso do saco de serapilheira, do tijolo ou simplesmente do montículo de areia. Estavam, todas elas, devidamente identificadas: “Aqui repousa Papa Moussa Diye PPL”. “Aqui jaz Papa Cheikl Camara”. Ibrahim Camara. Thiane Camara. Muitos Camara, apelido comum na região que deriva do nosso Câmara, dado aos servos ou cortesões com acesso directo aos quartos dos nobres ou monarcas. Durante a minha curta estada em Saint-Louis, tive o prazer de conhecer um desses Camaras, o escritor Louis Camara, estudioso das tradições dos Yoruba, etnia predominante na Nigéria e no Benim.
No lado oposto do istmo, já na margem do rio Senegal, um estaleiro de almadias, tantas vezes mencionadas nas crónicas dos Descobrimentos. No fundo, não passam de simples embarcações escavadas no tronco das árvores cuja rusticidade é disfarçada com cores garridas, imagens de santos ou de jogadores de futebol. Também por ali havia um secadouro de peixe, em cima de oleados, a uma centena de metros do Albergue do Pelicano – com prato do dia e promessas de uma vista excepcional a partir do terraço – e do Hotel Mermoz, “com jacuzzi e esteticista”, a residência de luxo cá do sítio que imortaliza a memória do pioneiro da aviação Jean Mermoz.
Ali perto, nuns simples barracos, era possível reservar um quarto à luz da vela e umas aulas numa “escola” de percussão africana, coisa que atraía sobretudo as viajantes solitárias em busca de experiências exóticas.
Sempre atento a possíveis vestígios lusos, não me passaram despercebidos os respiradouros da marisqueira Case Crevettes em forma de cruz de Cristo. Elemento decorativo que certamente remonta à passagem das caravelas por aquelas bandas. Também o Restaurante La Signare me trouxe reminiscências de Portugal. As signaras, ou seja, as senhoras, casta de mulatas influentes, graças aos laços afectivos que mantinham com os amantes europeus, seus protectores, têm origem nas primeiras miscigenações feitas pelos portugueses naquela parte do mundo. Algumas chegaram a ter imenso poder, sendo proprietárias de vastas propriedades, com dezenas de escravos ao seu serviço. Foi o caso de Bibiana Vaz de França, que chegou a constituir uma ameaça para a Coroa Portuguesa, Crispina Peres, mulher do cristão-novo Jorge Gonçalves Frances, acusada de feitiçaria e julgada pela Inquisição em Lisboa, ou Vitoria Albis, cujo apelido é certamente uma corruptela de Alves.
Aproximava-se o Natal e, com ele, a procissão das lanternas, na qual as signaras eram protagonistas. Vi-as vestidas de fadas, confortavelmente acomodadas em seges puxadas por cavalos, precedidas por homens mascarados de fantasma e demónio e carros alegóricos, ao constante som da batucada. Num desses carros seguia uma gigantesca réplica em cartão de um livro onde, em Francês, estava escrito: “Ler bem o universo é ler bem a vida”. Quais serão, afinal, as origens desta tradição?
Visitei a igreja com motivos góticos, não tanto devido à Missa do Galo, mas para melhor desfrutar dos impressionantes cânticos semelhantes aos gospels norte-americanos. Tentava não me sentir muito desfasado da época e por isso não hesitei em reunir-me, mais tarde, no Albergue da Juventude, a alguns europeus para, juntos, ali celebrarmos a efeméride com uma ceia de Natal improvisada que se prolongaria noite adentro.
Na rodoviária de Saint-Louis a regra era a seguinte: uma viatura só abalava quando houvesse determinado número de pessoas. Isto, apesar de estar à vista de todos o horário das partidas e chegadas, escrito a lapiseira numa tábua lisa suspensa na trave da paragem improvisada. Assim, congestionado entre pares num dos bancos de madeira da velha Mercedes 610 D, percorri a Nacional 2 até Dakar. Um caminho feito de venustos embondeiros e moças a vender laranjas sempre que parávamos para largar ou recolher passageiros. Era já noite quando chegámos às portas de Dakar, enfrentando, como consequência, um engarrafamento medonho que começava em Rusfique e seguia por ali adiante, ao longo da rua com o mesmo nome, derivante do antigo topónimo português Rio Fresco (ou Rio Fusco), pois havia aí, na época das caravelas, um rio onde certamente as embarcações faziam aguada. Hoje, não passa de um fedorento esgoto a céu aberto. Mais tarde seria estabelecida aí uma feitoria, sendo o amendoim um dos produtos mais transaccionados, até aos dias de hoje.
Joaquim Magalhães de Castro