Costa da Memória

Atentado no deserto

A véspera do festival tabaski foi vivida por alguns dos hóspedes do albergue com apreensão. Motivo: a presença do Jefferson Matt, um norte-americano de trinta e dois anos recentemente convertido ao Islão.

«– Os jovens estrangeiros conversos assustam-me», dizia a argelina Selma, em périplo africano na companhia do marido francês.

Havia outras razões para especulações e fatalismos. O bizarro acidente de balão que semanas antes vitimara dois alemães no planalto do Adrar, no norte do País; a poeira originada pelo Harmattan, esse vento que cobre de cinzento o horizonte, tornando a atmosfera pesada; os gritos dos imãs na chamada à oração nocturna impedindo as pessoas de dormir; já para não falar, claro, do balido das ovelhas pressentindo o momento do inevitável sacrifício…

O tabaski, na África Ocidental, corresponde ao eid al-kebir do mundo árabe, e tem a sua origem no conhecido episódio bíblico em que Abraão é posto à prova e se mostra disposto a sacrificar o próprio filho. Trata-se do mais importante evento religioso muçulmano, pois coincide com o fim da peregrinação anual a Meca, sendo, por isso, assinalado por festividades que se estendem ao longo de dois dias. Semanas antes, o preço das ovelhas duplica. Cada família tem a responsabilidade de sacrificar um animal, devendo reservar uma parte da carne para si e oferecer a restante aos amigos e aos pobres.

«– Não sei, mas não me inspira confiança. Com aquela barbicha à xiita, sem bigode», insistia Selma.

No dia anterior, a argelina fora abordada pelo sorridente norte-americano que lhe pediu informações acerca da Argélia – onde ficar alojado, onde comer, coisas do género.

Matt viajava de bicicleta e há vários dias aguardava resposta da Embaixada argelina ao seu pedido de visto.

«– É óbvio que não o vão conceder – vaticinava Selma – teria de mudar de aspecto, e mesmo assim…».

Eram exagerados os receios da bela magrebina, como pudemos comprovar, os que conversámos com Matt nessa mesma noite. A religião foi um dos tópicos. Religião e morte. E o norte-americano, sempre muito interessado e simpático, não se esqueceu de nos pedir os e-mails, como é habitual entre viajantes. Cativou até, com essa sua simpatia, um outro ciclista, japonês, acabado de chegar do Senegal, claramente agastado pelas agruras do trajecto, e a quem o constante sorriso de Matt parecia reconfortar.

«– Pareces feliz. Gostaria que me dissesses como consegues esse estado de espírito. Deve-se ao teu novo credo?», perguntou-lhe.

Adivinhando uma réstia de fertilidade no terreno à sua volta, Matt falou então dos «pioneiros do islão» e da «interpretação directa do texto divino, sem a interferência de intermediários», explicando assim o seu afastamento do Cristianismo. O discurso aproximava-se da filosofia salafita, facção islâmica que se diz fiel aos princípios puros da religião do profeta Maomé. Para alguns dos presentes, a conversa, associada ao sorriso seráfico de Matt, não era nada tranquilizadora. E ao falarmos, noite adentro – na ausência dos ciclistas – surgiriam, meio a brincar, meio a sério, teorias conspirativas que apresentavam um Matt feito com o seu compatriota Adam Gadan, porta-voz da rede Al-Qaeda. Gadan era o mais mediático de uma vaga de ocidentais recém-convertidos, tendo adoptado de imediato o nome Azzam al-Amkiri. Aquando da visita do Presidente Bush ao Médio Oriente, apelara aos muçulmanos para «receberem o cruzado não com flores e vivas, mas com bombas e viaturas armadilhadas». Imaginávamos Matt como executor de uma operação sangrenta visando degolar todos os estrangeiros ali presentes, numa noite simbolicamente apropriada. «A tarefa até não seria difícil de concretizar», comentava um dos convivas. A maioria dos hóspedes do Menata dormia em tendas colectivas tendo como única divisória as redes anti-mosquitos, esses, sim, um inimigo bastante temido.

Essa noite, apesar da conversa macabra, dormi tranquilamente. E nem sequer fui acordado pelo imã de madrugada.

Na manhã seguinte tudo continuava no seu lugar. A tartaruga, mascote da pensão gerida pela bela Olivia – uma francesa-catalã, verdadeira sósia da Ornela Mutti, casada com um mauritano – tinha até mais espaço para o seu passeio matinal, já que dos carros e caravanas habitualmente estacionados junto à sua lura artificial restava apenas a velha Peugeot de Luigi, assumido nomadi italiano de Allessandra.

Ao lado estava estacionado um todo-terreno que chegara ao Menata essa manhã transportando cinco adultos de nacionalidade francesa. Nada de extraordinário num albergue que via passar diariamente dezenas de estrangeiros. Em Nouakchott tratavam essencialmente dos vistos para o Mali e estudavam a melhor rota a seguir por aquela que é conhecida como a “Estrada da Esperança”. Fazem-no, de preferência, acompanhados. Mais por uma questão de mútuo apoio técnico do que propriamente por receio. Entre eles contavam-se muitos reformados com espírito aventureiro. Também nada de extraordinário – não fosse o facto de serem esses os franceses que na véspera de Natal foram notícia a nível mundial após serem abatidos a sangue-frio por tiros de Kalashnikov numa berma da estrada, em Aleg, a cento e quarenta e cinco quilómetros da capital. Este aviso dos terroristas islamitas acabou com o Rali Lisboa-Dakar antes de este ter começado.

Joaquim Magalhães de Castro

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