Costa da Memória

PEDRA DA GALÉ

Apesar das afinidades históricas, sarauís e mauritanos são rivais. Por isso não estranhei quando o gerente do Hotel Sahara, onde estava alojado, me lançou o seguinte alerta:

«– Tenha cuidado com os mauritanos. Não se pode confiar neles».

O certo é que os mauritanos eram a minha única alternativa para poder partir de Dakhla, esgotada a possibilidade de encontrar boleia com estrangeiros. Bem a procurei, numa visita sem sucesso ao parque de campismo. Aproveitei essa deslocação para acompanhar a faixa litoral ao longo de um quilómetro onde gente endinheirada, estrangeira e marroquina, construíra casa tirando partido das reentrâncias nas arribas do Rio do Ouro, o que lhes outorgava direito a praia privada.

Entre o furgão adaptado, com bancos de madeira corridos, que tanto levava gente como mercadorias, e o automóvel particular, optei por este, pois assim tinha a certeza de chegar nesse dia a Nouabidou, a segunda mais importante cidade da Mauritânia, no extremo norte do País.

Eis-me então enfiado numa Toyota Corolla de vidros baços, na companhia de quatro mauritanos, assenhorado do privilégio – porque era estrangeiro; porque me mostrava disposto a fotografar o tempo inteiro; e, provavelmente, porque pagara mais (ao todo trezentos dirhams) – de poder ocupar o lugar do morto, que, apesar da macabra designação, não só é mais confortável como oferece melhor panorâmica.

O condutor era um mauritano negro, ou seja, um haratin bem-sucedido na vida, chamado Senaga.

Durante quase meia hora, revi a beleza daquele troço de terra que se destaca da massa continental africana como se fosse uma unha comprida a crescer no dedo mindinho, até ao Km 45, onde os intrépidos kite surfistas desafiavam os ventos constantes que ali sopram a largas dezenas de quilómetros por hora. Depois, retomando de novo o Sul, fomos directos a Al Argoub, que pouco mais era do que uma estação de serviço, apesar de, no mapa, se assemelhar a um povoado de considerável dimensão. Era bem visível dali a ilhota rochosa da Pedra da Galé, ou Piedra de la Galéa, como lhe chamavam os espanhóis, no meio do Rio do Ouro. Alguns quilómetros mais a sul, fui surpreendido por uma placa apontando para a costa e com o nome Porto Rico. Certamente outra dessas aldeias de pescadores abandonadas. Havia nas proximidades uns muros derrubados, quiçá sinais de antigas fortificações.

Terá sido algures por ali que Antão Gonçalves e Nuno Tristão capturaram um grupo significativo de indígenas numa das páginas menos dignas da expansão ultramarina. Escreve Gomes Eanes de Zurara que “além deste que Nuno Tristão, por si só, matou, os outros mataram três e prenderam dez, entre homens e mulheres e moços”. Para celebrar o “feito”, Tristão, o chefe da expedição, conferiu a Antão o mais elevado grau da cavalaria. Em virtude disso, o lugar passou a chamar-se Porto do Cavaleiro, nome que entretanto se desvaneceu. Nuno Tristão pediu ao intérprete que levava consigo que “falasse com aqueles mouros, e nunca o puderam entender, porque a linguagem daqueles não é mourisca mas azenaguia do Zaraa, pois assim chamam aquela terra”.

O infante D. Henrique dera-lhes ordem de “fazer a paz com os naturais” e procurar “novas sobre o que escondia o deserto ou que estava mais a sul”. Ignorando estas ordens, muitos tornaram-se piratas amadores.

Antão Gonçalves, protótipo do mercador e navegador, numa fase inicial sozinho, e depois na companhia de Nuno Tristão, capturou pela primeira vez indígenas do Saara Ocidental, descritos como “homens de cores que variavam entre o vermelho tijolo e o preto”, vestidos de túnicas e calças de couro, ou nus. Ambos foram suficientemente lúcidos para nele reconhecerem um chefe local, a quem de imediato “trataram como cavaleiro” e quiseram levar para que o Infante o visse. Foi o maior dos “troféus”. De forma involuntária, passaram de piratas a agentes diplomáticos. Adahu, assim se chamava o “nobre” sarauí, no dizer de Zurara, “vira mais coisas e melhores que os outros”. Além disso, falava Árabe.

Foi nessa condição mista, de prisioneiro e emissário, que Adahu desembarcou em Lagos. Profundo conhecedor do Saara, revelou ao Infante a vastidão do deserto que se estende do Atlântico ao mar Vermelho e falou-lhe das caravanas silenciosas que o atravessavam, meses a fio, e das mercadorias transportadas. Tão longa era a viagem, que aqueles que partiam nunca eram os que chegavam, pois as cáfilas revezavam-se nos entrepostos erguidos no oásis e que hoje as areias amarelas do Saara voltaram a reclamar. Tombuctu, porto do deserto do rio Níger, era o mais conhecido do cruzamento de caravanas. Adahu tinha visto aí chegar cáfilas com centenas de camelos carregados de ouro, cuja origem poucos conheciam. O precioso metal era trocado por sal. Deixavam-no em determinado local e no mesmo dia desaparecia, surgindo em seu lugar ouro em igual quantidade, que depois era transportado de barco pelo Níger até Tombuctu, e daí para Tunes, Trípoli e o Egipto. Adahu foi tratado como um hóspede de honra. E regressaria à sua terra para ser resgatado por negros, que iriam para Portugal com um curioso escudo indígena e muitos ovos de avestruz que foram servidos ao Infante.

Mas nem todos eram cativos. Quando Antão Gonçalves regressou ao Rio do Ouro, pela terceira vez, em 1445, um velho berbere manifestou o desejo de ir visitar o Infante, e o navegador, certamente satisfeito, fez-lhe a vontade.

Joaquim Magalhães de Castro

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