O hino da Polisário
A visita seguinte foi a um café onde todas as noites Said fumava o seu narguilé com os amigos, e a um outro com serviço de Internet, onde aproveitei para mandar para a Imprensa de Macau, como habitualmente, as impressões entretanto registadas. Enquanto me concentrava nessa tarefa, ecoou na sala uma bonita melodia na qual sobressaíam o acordeão e o violino. Aquilo soou-me a ibérico, mais português do que espanhol. Surpreendido, perguntei qual a origem dessa música, e Said limitou-se a dizer:
«– É o hino oficial da Polisário».
Ao balcão, o dono do café, aquiesceu com um aceno de cabeça. Já os dois miúdos, com não mais de onze anos – os únicos clientes – limitaram-se a olhar-me e a sorrir, algo embaraçados com tão descarada pergunta. A singeleza de ambos deixou-me surpreendido.
«– Em dialecto berbere, Boujadour significa “aquele que tem raízes”», acrescentou Said, como se a conversa viesse a propósito.
E as raízes eram algo de precioso para Said, tal como a amizade. A notícia da minha estada na cidade atraíra outros professores, e na noite seguinte o convite para jantar foi já numa outra casa. E com diferentes protagonistas. Amgroud, esse, continuava por aparecer.
Um dos novos professores era de assumida origem berbere. Tinha a pele mais clara e os olhos verdes. E por ser do norte montanhoso, não se cansava de “insultar” amigavelmente os seus colegas mais escurinhos, «estes invasores árabes», tal como os minhotos ou os durienses falam em “mouros” quando se referem às pessoas do Centro e do Sul de Portugal.
Nas antípodas do berbere, encontrava-se um descendente directo do profeta: um xarife, que todos tratavam com mais deferência, mas sempre com o à vontade próprio de quem está entre amigos. Falou-me da presença de traços portugueses no interior de Marrocos, «até aos limites do Saara», mais propriamente em Zagora, «na região de Tean Cita». Segundo ele, existiriam aí diversas grutas conhecidas como «cavernas dos portugueses», onde se teriam travado batalhas, «quase de guerrilha», não tão sangrentas como as que se faziam em campo aberto. O xarife lembrou ainda a existência de um guerreiro chamado Agdiz e das suas mulheres Sti e Toba, alegadamente de origem lusa. Neste último caso, estamos decerto na presença de mais um episódio da mitologia local associada à passagem dos portugueses, mas cuja origem é muito mais antiga.
Os berberes bafour ou bavur, que nos primeiros tempos da navegação henriquina a mitologia árabe medieval classificava como “descendentes de uma tribo de homens de cabeça de cão e cauda comprida que viviam nas terríveis alturas de Abofur”, são hoje associados a pretensas comunidades de luso-descendentes. Mas a verdade é que esses bafoures, que por ali se estabeleceram há mil anos antes de Cristo, só no século VII, com a chegada dos invasores árabes, se foram convertendo, gradualmente e nunca por inteiro, ao Islão. Neste caso, as diferenças são óbvias. Mas muitas das vezes, verdade seja dita, em termos fisiológicos, é quase impossível diferenciar um marroquino de um sarauí.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Hoje, são já várias as organizações e personalidades espanholas activas na defesa do direito à autodeterminação do povo do Saara Ocidental.
Talvez encorajados pelo facto de Portugal ter participado na Missão das Nações Unidas para o Saara Ocidental (Minurso) desde 1996, com vinte e três efectivos e dois comandantes da força – entre eles o ex-governador de Macau, o general Garcia Leandro, nesse posto de Março a Novembro de 1996, mas que não continuaria «por razões pessoais e de consciência» – um grupo de intelectuais sarauís (entre os quais, alguns dos que conversaram comigo em Bojador) procurava em Portugal um aliado que os ajudasse a alcançar a tão almejada independência. E isto, apesar de ter sido o Acordo de Sintra, em 1958, que legitimou a autoridade espanhola sobre as regiões de Saguia el-Hamra e o Rio del Oro, ficando Tarfaya – a moeda de troca – a fazer parte de Marrocos. Portugal foi, em 2000, o décimo primeiro país do mundo com mais forças envolvidas em missões da ONU, mas essa presença foi sendo reduzida e já não integrava o contingente da Minurso.
Esses intelectuais valorizavam os antigos contactos estabelecidos e minimizavam os episódios menos edificantes, conscientes de que “o plano henriquino” se preocupava mais em estabelecer relações de comércio profícuas e obter conhecimento das realidades no terreno do que a obtenção do simples lucro. Conheciam os textos de Zurara e as descrições de Luís de Cadamosto ou de Diogo Gomes, incluídas no manuscrito impresso por Valentim Fernandes.
Para os árabes, grandes viajantes por terra e por mar, o Atlântico era conhecido como o “Verde Oceano das Trevas”. Um verdadeiro deserto movediço, refém das ventanias incertas e que ninguém ousava transpor, sendo por isso considerado não navegável. Mais. Os teólogos árabes dogmatizavam: todo o homem que nele tivesse a loucura de se aventurar devia ser privado dos seus direitos cívicos. As raras tentativas feitas por marinheiros ocidentais não tiveram qualquer continuidade. Dos irmãos Vivaldi, embarcados em Génova, em 1291, dispostos a contornar a África, nunca mais ninguém ouviu falar. O mesmo se passou com a expedição do catalão Jaime Ferrer, que em 1346 partiu em busca do afamado Rio do Ouro, na altura identificado a norte do Bojador.
Os portugueses seriam os primeiros a navegar deliberadamente até ao oceano profundo e, dali, a orientar-se, achando a latitude pelo Sol e pelas estrelas, determinando assim a posição do navio quando este se encontrava a muitas léguas da costa.
Joaquim Magalhães de Castro