Costa da Memória

Cashbás do Mar Pequeno

O moderno “autopullman” levou duas horas e meia a palmilhar noventa e cinco quilómetros. Ia tão devagar que até os desengonçados camiões de transporte de ovelhas nos ultrapassavam.

Quase sem que tivéssemos oportunidade de ganhar o gosto à estrada, eis-nos de novo quedados, desta feita numa estação de serviço. Era óbvio que o condutor estava a atrasar propositadamente a viagem, para poder parar onde lhe convinha e podia comer à borla. Os trinta minutos de paragem previstos foram, na realidade, quase sessenta.

«– Neste país, é assim. Não vale a pena protestar, pois eles têm sempre razão», comentava, a propósito, Ethuane, homem de negócios mauritano e um dos poucos passageiros. Depois, indicando o motorista e o ajudante, os únicos que almoçavam no restaurante anexo às bombas de gasolina, vaticinou: «– Vai ver. Daqui a duas horas voltam a parar».

Não é que estivesse com pressa. Irritava-me apenas não poder apreciar a orla costeira à luz do dia, como estava previsto, se o horário fosse respeitado. Por enquanto, continuávamos bem enfiados no interior do País. Tiznit, com verdejantes jardins e uma bonita muralha vermelha em seu redor, foi a cidade seguinte. Chamou-me a atenção a frota de Mercedes Benz 220, transformados em táxis, ali de cor verde. Face a tal cenário, não pude deixar de me perguntar: “Como é possível que haja tantos Mercedes em Marrocos?”

Reapareciam os cashbás, em pleno deserto, ou melhor dizendo, casas estilo fortim, incorporadas em sucedâneos de oásis. Quando, finalmente, entrámos no Anti-Atlas, em Tizi-Mighert, uma série de subidas ziguezagueantes vieram quebrar a insipidez da paisagem. Subimos, para logo voltarmos a descer, até à aldeia de Bou Izkram. Uns quilómetros adiante, em Tagarit, o motorista parou para fazer um acordo de berma de estrada com um indivíduo que parecia conhecer muito bem. Mais uma prova de que utilizava um serviço público para tratar de assuntos só seus.

A presença de helicópteros, naquele céu de um azul imaculado, sobrevoando insistentemente a povoação, mereceu o seguinte reparo do mauritano: «– Tudo indica que o rei vai passar por aqui dentro em breve».

Pelos vistos, o jovem monarca tinha por hábito efectuar visitas ao país profundo com alguma regularidade. E o País, como seria de esperar, engalanava-se para o receber. Com fitas, balões e fogo-de-artifício. Nas fachadas e portas dos principais edifícios de Tagarit abundavam diferentes tipos de faixas verdes e vermelhas, as cores da bandeira marroquina. Umas boas dezenas de quilómetros a sul, em Guelmin, aguardava-nos idêntico panorama. Realiza-se anualmente nessa cidade um importante festival protagonizado por camelos e cameleiros, que ao longo de vários dias cumprem as mais estritas das tradições do nomadismo árabe, disputando animadas corridas.

Na estrada, os dispositivos policiais juntavam-se aos militares, posicionando-se nos locais mais improváveis e inesperados. Podia muito bem ser na berma do asfalto, ao fundo de uma interminável recta, com os dois agentes de serviço pachorrentamente sentados em cadeiras de praia ao lado do Peugeot 404, branco e com uma tira azul em torno de toda a carroçaria, escolhendo, como quem joga roleta-russa, quais os veículos a inspeccionar e aqueles a dispensar. Todos os condutores eram, no entanto, obrigados a afrouxar, primeiro, e, depois, a parar. Esse tipo de operação aconteceu dezenas de vezes no decurso da viagem.

Volteando em círculos, dois helicópteros exerciam o controlo aéreo, já bem fora do perímetro urbano. Obviamente, as questões de segurança não podiam ser descuradas naquele “Marrocos exterior”, susceptível, portanto, de possíveis focos de ameaças que pudessem pôr em causa a integridade física do monarca.

A velocidade do nosso autocarro continuava igual à do camelo. Após uma breve consulta ao mapa, que mantinha dobrado em cima dos joelhos, soube que nos dirigíamos para a costa, preterindo a estrada interior.

O encontro com o oceano dar-se-ia junto ao cabo Gourizim, assinalado por um lugarejo de pescadores. Aquele era, decerto, o cabo Gozoro da minha carta histórica, que, muito provavelmente, corresponde ao cabo Não, pois o famoso promontório estaria a esta latitude. Pelo menos, todas as evidências apontam nesse sentido.

A cidade costeira de Sidi Ifni tem a sua origem num acordo firmado, em Marraquexe, entre a Espanha e o sultão Sidi Mohamed ben Abdallah, nos finais do século XVIII. Seria um dos primeiros indícios da colonização espanhola a sul, personificada em locais como o Suerte Loca, hospedaria de renome, ou nas muralhas do Forte de Assaka.

Antes que a estrada enveredasse de novo para o sertão, houve tempo para uma paragem técnica, junto a uma arriba, frente a um cargueiro praticamente intacto, embora bastante ferrugento, varado na pequena praia, ao fundo, erguendo-se qual estátua. Enfim, um verdadeiro monumento!

Aquele era, apenas, um dos muitos navios encalhados nos recifes, realidade constante ao longo da costa oeste do Norte de África, merecedora do epíteto “costa dos naufrágios”.

Joaquim Magalhães de Castro

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