Ecos do Mundo Português
Falávamos na semana passada, a propósito destas coisas do património histórico português, com o arquitecto António de Almada Negreiros, no caso concreto acerca da preservação da “cidade portuguesa” de Mazagão (onde agora nos encontramos nesta nossa viagem pelo Norte de África). «É preciso uma grande abertura de diálogo e discussão sobre as coisas para que elas se possam reportar a um plano já mental, intelectual e artístico, e para chegar lá é por vezes muito difícil», dizia-nos, «pois há que contar com os grupos de pressão, interesses estabelecidos». E concluía: «Politicamente é uma coisa muito difícil de administrar».
O facto de ter vivido em África (onde nasceu o pai, em São Tomé e Príncipe) levou-o a ver uma série de territórios que reflectiam a expansão e os contactos que Portugal foi tendo no mundo inteiro, do Brasil ao Extremo Oriente. Acreditava que há forte cunho arquitectónico português em três centenas de cidades, além de um número indeterminado de edifícios isolados e fortificações. Nelas se inclui Mazagão, que Negreiros recordava com saudades, pois ali fez «um estudo de reabilitação, que não era só arquitectónica mas também urbanística».
Aproveitou para manifestar o seu desagrado pelo facto de ter sido a Itália a coordenar um empreendimento no Golfo Pérsico, «onde eu fazia uma intervenção na altura», sem que esse país tenha tido qualquer desempenho histórico na região, contrariamente ao nosso. Vicissitudes de um país pequeno, com uma cota de participação reduzida na UNESCO, e que por isso vê com frequência o seu legado ser usurpado por outras nações. Para compensar, há que fazer investigação permanente e contínua. «Tudo é perfectível», como o meu pai costumava dizer, «tudo é sujeito a atingir a perfeição».
No “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”, Almada alertava para a necessidade de criar “a Pátria Portuguesa do séc. XX” e escrevia: “O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades”. Para Almada filho, não há nada de injusto nesta frase, pois «as coisas tinham de ser ditas com uma certa veemência para conseguir que delas se surtisse algum efeito», salvaguardando, mesmo assim, que os Manifestos contêm muitas coisas que não podem ser tomadas à letra.
«O meu pai tinha uma grande veemência nas posições que tomava e não cedia um milímetro», afirmava. Fora disso, era uma pessoa de grande cordialidade e generosidade, embora, como é óbvio, não gostasse que o pisassem. E o arquitecto sabia do que falava pois conviveu com o pai até aos trinta anos. Com ele partilhou o ateliê, e dele herdou o gosto pelo pincel. «Foi um convívio bastante constante e relativamente prolongado. Teve uma função formativa e informativa». Ainda hoje, perante uma ou outra dúvida, é a recordação do pai que o ajuda a ultrapassá-las. Pelos visto não só a ele. Tinha um amigo pintor que lhe dizia: «Não é só a ti mas a todos nós. Há em Almada Negreiros todo um balanço de referência que é inapagável».
Em si, do seu pai, o que é que ficou? Não nos pode responder directamente. Sabe que há fenómenos de aculturação que não se transmitem. Mas há os de carácter biológico, que, esses sim, se transmitem, «e a pessoa fica com mais atenção para situações visuais, mais atenção para situações da língua falada e escrita».
Aos que criticavam o pai associando-o ao Estado Novo, o arquitecto não os consegue compreender, «até porque a relação do grupo Orpheu com o Estado Novo começa mal». Primeiro, pela grande crítica ao regime feita por Fernando Pessoa. E, depois, pela caricatura que Negreiros fez de Salazar, retratando-o como um provinciano de botas e chapéu-de-chuva. «E Salazar afinou imenso devido a isso», garantia.
A aproximação da parte do Estado acontece numa altura em que há uma aproximação a toda gente com valor e talento, iniciativa do propagandista António Ferro, incumbido de preparar a Grande Exposição do Mundo Português de 1940. E nesse sentido, Almada realiza as obras de arte de maior dimensão dos últimos séculos em Portugal. Mais do que adesão, havia ruptura. A sua famosa frase «as construções do Estado multiplicam-se a olhos vistos, porém as paredes estão nuas como os seus muros, como um livro aberto sem nenhuma história para o povo ler e fixar» é exemplificativa.
Almada tinha uma consciência política geral, mas definia-se a si próprio como «um apolítico voluntário». Esse facto, aliado «ao prestígio atingido desde muito novo e que o tornava intocável», levou a que nunca tivesse problemas de cariz político. Tem, isso sim, uma vivência do período republicano que antecede a Guerra Civil em Espanha, «com os esquerdismos e os direitismos», regressando a Portugal com uma ideia precisa daquilo que um clima desses podia provocar. «O que lhe permite ter as reservas e a lucidez suficientes para o seu comportamento cívico ser, de certa maneira, aculturado e não directo primário», conclui. Que o considera «um batalhador pelo seu país» com capacidade de autocrítica e espírito de sacrifício. Recorda que Almada deixou escapar oportunidades profissionais que lhe surgiram em Paris ou Madrid. «Nesta última cidade recusou apresentar a sua obra num pavilhão espanhol pelo simples facto de ser português, o que era uma coisa extremamente importante para ele».
Joaquim Magalhães de Castro