Mar calmo em Mazagão
A fundação das fortalezas a sul tinha como objectivo o escoamento dos produtos da região de Duquela, fértil em trigo. Na busca de um lugar que lhes proporcionasse o desembarque seguro que necessitavam, os portugueses utilizaram a baía e a povoação de Mazagão.
Duarte Pacheco Pereira, no seu Esmeraldo de Situ Orbis, assinala: «Aqui foi antigamente a cidade de Mazagão, que agora é de todo destruída; e esta angra é bom porto para naus grandes… e nesta baía de Mazagão carregam muitas naus destes reinos, e assim de Castela, de trigo».
Fortificado o lugar, Mazagão passaria a ser referência, exemplo de resistência e apetecido posto comercial, até finais do século XVIII, sendo a última das praças do Magrebe a ser abandonada. Foi para lá que fui – de comboio.
De Rabat a Casablanca é um repente. Sessenta minutos de viagem só com paragem em Mohammadia, o único registo urbano antes de chegarmos à tão badalada cidade. Um luxo num comboio à francesa, cortesia da SNCF, que para aqui enviou as carruagens a troco de uma importante cedência: os anúncios nas estações e no interior das composições seriam feitos primeiro em Francês e só depois em Árabe. E ainda assim é. Em Francês, o revisor informa-me: «Vous devez changer a Casa Port». Casa Port, a principal estação ferroviária de Casablanca, sobranceira ao porto, um dos maiores do continente africano.
Depois de semanas de incursões no país real em desconfortáveis camionetas apinhadas de gente, eis-me de regresso ao universo das viagens à europeia, em que cada um dos passageiros vai metido consigo próprio.
A rapariga sentada ao meu lado era uma dessas beldades de capa de revista, com longas pestanas, das verdadeiras, embora com excesso de rímel. O rapaz em frente entretinha-se a folhear uma revista francesa especializada em gestão, e a jovem sentada no mesmo assento falava ao telemóvel, também em Francês, enquanto no assento do lado oposto do apertado corredor ia sentada uma verdadeira sósia da actriz São José Lapa. Uma vez mais perguntei aos meus botões: Estou mesmo em Marrocos? Como se me tivesse escutado os pensamentos, a que falava ao telemóvel, pondo fim ao diálogo com um decidido “alors, à demain”, sacou de dentro da malinha um pequeno livro em Árabe e fixou os olhos atentamente no conteúdo das suas páginas como o faria a mais devota das muçulmanas. Na capa desse livro estava um imã barbudo em pose de pregação como os imãs barbudos do canal televisivo de temática religiosa, sintonizado em permanência na loja com a melhor bissara de Arzila (as sopas de favas não me largavam…).
As marroquinas têm uns olhos de fazer parar o trânsito, porém, falta-lhes, como hei-de dizer, formas, contornos. O rabo é, não raras vezes, mal-amanhado, se bem que, regra geral, as moças sejam esbeltas em tudo o resto.
O mar, ao largo, continuava a ser referência, se bem que as suas águas cinzentas de chumbo continuassem pouco atractivas. Nuvens carregadas, quase negras, toldavam os céus de Casablanca, a Bar el Beida dos árabes. Eis-me em Casa Port, noutro comboio, este mais a condizer com a realidade local, a atravessar bairros de lata e lixeiras com pessoas a urinar e a defecar ao longo da via-férrea, tal como se vê fazer na Índia. Os comboios têm destas coisas: permitem ver o lado negro de uma branca cidade, por exemplo.
Os anúncios nas estações continuavam a ser feitos em Francês, com uma sonoridade que lembrava o dedilhar de uma guitarra. Nos campos surgiam agora tamareiras isoladas como se as sementes tivessem voado para ali a partir do deserto, que se adivinhava a sul. A poucos quilómetros do destino final avistámos Azamor, no lado esquerdo do rio Houm Rabia, tal como indicavam as nossas crónicas de antanho. Halte De Azemmour era o nome da estação, que ficava bastante longe do centro da povoação.
O dilúvio aconteceu em Mazagão no exacto momento em que chegávamos à estação ferroviária, também ela nos antípodas do coração da cidade. Esperava-nos, para minha surpresa, um autocarro moderno da frota municipal. Por trás dos vidros embaciados lá consegui vislumbrar a primeira placa informativa de cor azul com a seta a apontar para oeste, onde estava a praia. Nela estava escrito: “Cité Portugaise”. Assim é conhecido o perímetro amuralhado da Mazagão antiga, classificado como Património da Humanidade, outrora isolado do mar graças a um fosso aberto na rocha. Ligava-o à terra uma ponte levadiça, sendo a Porta do Mar, virada ao oceano, o ponto de entrada dos víveres que lhe asseguravam a sobrevivência.
Esta “Cidade Portuguesa” é a verdadeira vedeta de Mazagão, que desde 1769, data do seu abandono pelos portugueses, é oficialmente conhecida como El Jadida, o que em árabe significa “A Nova”.
Hotel du Maghreb. Hotel de France. Hotel Bordeaux. A escolha em termos de alojamento continuava a não ser muita e tresandava a Francês. Optei por ficar no Nice, que era mais pensão do que hotel, por sugestão de um habitante que, ao inteirar-se da minha nacionalidade, se dispôs a ajudar-me.
«– Em El Jadida vai encontrar muitos portugueses», disse o rapaz.
Joaquim Magalhães de Castro