Névoa em Alcácer Quibir
Aquele que ficou para a história como “O Encoberto” nasceu, em plena crise dinástica, em 1554, no dia de São Sebastião, como se estivesse predestinado a uma morte cruel, como a do santo. As responsabilidades chegaram cedo demais na sua vida. Único herdeiro ao trono, é aclamado rei com três anos apenas e, aos catorze, exerce o poder, de facto. Portugal, no auge do seu império, apontando inúmeros e variados caminhos a Ocidente e a Oriente, a Norte e a Sul, era então a nação mais cobiçada do planeta.
Sujeito a pressões políticas e militares, próprias do xadrez desenhado pelos poderosos da época, o imberbe valido acabaria por se desinteressar pelos feitos e maravilhas do período em que vivia. Nada faria esperar que um jovem educado por mestres como o jesuíta e humanista Luís Gonçalves da Câmara e pelo matemático, imbuído do espírito renascentista, Pedro Nunes optasse pela caça e pelos desportos violentos, em detrimento da arte e do conhecimento científico, motor das Descobertas que então se processavam.
Além da guerra e do zelo religioso, nada mais parecia motivar o tempestuoso monarca, cuja saúde, porém, era débil. As mulheres tão-pouco lhe despertavam as atenções, mesmo que tal fosse do interesse estratégico do País, pois pela via da diplomacia casamenteira se faziam acordos, se estabeleciam alianças, se moviam influências. Sebastião nunca se casou, anunciando com o celibato o vácuo em que mergulharia a nação. Mas se nunca se casou, como pode Tomás Colaço ser seu descendente? E é aqui que este episódio se torna mais interessante.
«Segundo conta o meu tio-avô – explicava o artista plástico – quem morreu nos campos de Alcácer Quibir não foi Sebastião, mas sim um seu fiel escudeiro».
Na realidade, um irmão de leite, um seu colaço, filho da ama que alimentara o monarca quando menino, como era hábito entre a fidalguia. Sacrificando o escudeiro a sua vida, salvo ficaria o símbolo de uma nação. Só que o rei não mais voltaria para reclamar o trono que lhe pertencia. Porém, como o próprio Tomás Colaço salientava, «esses não são factos historicamente comprovados». Por isso, procuremos de novo na História.
Com a crescente crise financeira e um corso institucionalizado a ameaçar os nossos navios, o descentralizar da administração no Oriente aconteceu quase naturalmente, começando então a desenhar-se um verdadeiro “império-sombra”, cujos protagonistas – os ditos lançados, mercadores e aventureiros portugueses, muitos deles já miscigenados – actuavam à margem da Coroa. No Brasil e em África prosseguiam missões de colonização. Fortalezas eram erguidas para defender as possessões portuguesas nas orlas costeiras de todos os continentes, mais do que nunca cobiçadas por holandeses, franceses e ingleses, nossos eternos rivais.
De carácter determinado, obcecado pelo espírito de cruzada, D. Sebastião, com o mundo islâmico logo ali, ao sul do Algarve, comete o primeiro acto “irresponsável”. Embarca secretamente para África, em 1574, com o intuito de ir aí combater, relegando responsabilidades governativas no envelhecido tio, o cardeal D. Henrique. A esta atitude não terá sido alheia a pressão sentida pelo grande empreendimento das Descobertas, talvez demasiado vasto para um país esvaziado de gente. Como escreve Tomás Ribeiro Colaço, «a nação estava doente de um Impossível – que era a sua própria sobrevivência».
Frustrado por não ter encontrado motivo para peleja, Sebastião regressou a casa e, doravante, tudo faria para conseguir o aval de Roma, de modo a poder regressar a África, desta feita com legitimidade. Ignorando a séria ameaça de o reino poder ficar à mercê de Espanha, Sebastião recrutou milhares de homens inexperientes e contratou mercenários da Alemanha, Flandres e Espanha. A eles juntou-lhes uma nobreza decadente, amolecida pelos luxos que a riqueza gerada pelos Descobrimentos permitia. Prova dessa decadência foi o terem transportado para a campanha no Norte de África criados, tendas e bagagens, onde não faltavam instrumentos musicais. Mas, como diz a canção, “o mouro é que conhecia o deserto”. E Sebastião, «que procurara», ainda nas palavras de Ribeiro Colaço, «uma vitória faiscante que fizesse estremecer a Cristandade, teve a grandeza abismal de uma tragédia». A armada de Sebastião, dezassete mil homens a bordo de mais de 600 navios, indisciplinada e sem estratégia, subestimando claramente as forças inimigas, foi desbaratada nos campos de Alcácer Quibir, a 4 de Agosto de 1578. Perecerem mais de oito mil homens, e outros tantos foram feitos prisioneiros.
Contam as crónicas que no final da batalha eram imensas as guitarras dispersas pelo chão. Metáfora do provir. Ao trinado dessas guitarras iniciava-se muito deste fado que nos persegue ainda hoje.
Morto Sebastião, nasceu o mito. Como convinha. E os portugueses encontraram desculpa para deixarem derrapar o País. Para deixarem desvanecer, como dizia Agostinho da Silva, «esse sonho universalista em que os portugueses que vivem apenas para Portugal não têm razão de ser».
As revelações da família Colaço trazem, porém, novo lume à matéria, e sustentam-se num dos sermões do padre António Vieira, que a versos tantos, afirma: “Sebastião não morreu na batalha. Foi retirado nela”. Segundo defendem, Sebastião, perdida a batalha, não ousou revelar a verdadeira identidade, provavelmente envergonhado pela sua insensatez, ou, quiçá, receando pela própria vida. Seriam executados, nos anos que se seguiram a Quibir, vários indivíduos que reclamavam ser “O Desejado”.
Joaquim Magalhães de Castro