Estórias de Alcácer
Conhecida entre os portugueses como “cidade do Castelo Velho”, Alcácer é um excelente exemplo de uma praça de guerra, como bem a descrevia D. Fernando de Meneses: «Na torre mais alta do castelo se levanta outra pequena e quadrada, em que assiste uma vigia ou facheiro com um sino, em que faz sinal do que se vê no mar ou no campo; dá rebate e seguro com badaladas diferentes; está no alto um mastro ou facho com um modo de cesto ou canastra sem fundo, coberto de pano breado e preso em uma roldana, por que sobe e desce; quando está no alto é sinal que está seguro e ocupado das atalaias o campo que se toma; e quando desce ao meio de que a gente se recolha».
Esta descrição do castelo dá uma ideia do seu sistema defensivo, constituído por atalaias, daí que certos lugares na região tenham guardado durante séculos os nomes lusos, como foi o caso da “atalaia do Facho”, a “atalaia do Ruivo”, a “atalaia Gorda”, a “atalaia Alta”, etc.
«– Nos mapas mais antigos podemos ainda encontrar esses nomes assinalados», informava Abdelatiff.
As praças do Norte de África eram abastecidas a partir da metrópole, dando origem a um constante vaivém de embarcações, que após terem transportado as madeiras, as pedras, a cal e os artífices para as construir, passariam a levar «todos os dinheiros e trigo que enviamos de Portugal», como o demonstram as cartas de quitação dos oficiais da fazenda chegadas até nós. Nos períodos de menos tensão, ou até de paz, com os representantes do poder local, praças como a de Alcácer funcionavam enquanto postos intermediários, pois as mercadorias que por ali transitavam tinham a sua origem nos países do Norte da Europa.
Envolvidos no tráfico marroquino não só havia mouros e portugueses, como genoveses, castelhanos e judeus. Estes últimos sempre foram numerosos em Marrocos, habitando bairros específicos. Eram lojistas, penhoristas e usurários e a eles recorriam os soberanos em momentos de maior aflição. Nas nossas relações comerciais com os mouros, serviram de intermediários e, como tal, tiraram daí o maior proveito possível.
Conheci em Tânger um descendente desses marranos, que não tinha qualquer problema em assumir as suas origens. David Levi, assim se chamava, sabia, como poucos, a história dos judeus em Marrocos. Sabia, por exemplo, da existência de personagens históricas como Mair Levi, Benzameiro e Dardeiro, frequentemente mencionados nas nossas crónicas coevas.
Que mais se pode dizer acerca desta Alcácer, a que tão fortemente se afeiçoou D. Afonso V? Aqui se prepararia o Africano – com armas, fazenda, homens e estratégia – fosse para as três fracassadas abordagens a Tânger, fosse para vitoriosa ocupação de Arzila, aproveitando-se da fraqueza do rei de Fez, que ao deixar os negócios do reino entregues ao judeu Harune, um dos seus mais abastados moradores, perderia a confiança dos súbditos e, eventualmente, a própria cabeça. Como escreve David Lopes, «pôr um judeu à testa deste serviço é concitar contra ele todos os ódios e sobre o soberano a perda de autoridade».
De regresso a Tânger, de novo enfiado no Mercedes colectivo, tive a companhia de duas interessantes personagens. Uma delas, emigrada em Espanha, provocara distúrbios que a obrigariam a um regresso apressado. Pelo teor da conversa, deve ter sido coisa de droga. A outra, um professor a gozar as férias escolares, tivera, em tempos, o hábito de visitar Portugal com grupos de excursionistas, mas, «com esta coisa dos vistos para entrar nos países da União Europeia», deixara de o fazer, pois não estava para passar pelo «vexame de ter de ir a uma embaixada».
«– Esta nova Europa dos muros altos quer ter à sua disposição exércitos de mão-de-obra barata», comentava.
Via nesse professor uma espécie de pensador-livre, género de avis rara que, para meu espanto, encontraria ao longo da jornada, e com mais frequência do que imaginaria.
As brochuras turísticas marroquinas atribuem origem portuguesa a um castelo com quatro torres circulares, situado não muito longe de Malabata, o promontório que, a leste, encerra a baía de Tânger. A oeste, cumpre similar tarefa o cabo Espartel. Integralmente recuperada, todo o interior cimentado, a fortificação ergue-se, ignorada, numa colina sobranceira a um parque de estacionamento e um pequeno kartódromo. O principal motivo que leva as pessoas àquele lugar é o «farol português de Al Menara» – como dizem os locais – e as fantásticas panorâmicas dali obtidas.
Dotado de sofisticado material electrónico, a principal função do Al Menara é controlar todo o movimento marítimo, pois a cosmopolita Tarifa, a “cidade dos ventos”, que inspirou Paulo Coelho a escrever “O Alquimista”, que lhe daria notoriedade mundial e uma choruda conta bancária, está mesmo em frente, no lado oposto do estreito.
A uns metros do farol, assente sobre a escarpa, chamou-me a atenção um torreão, talvez de origem portuguesa, o que explicaria o simpático cognome do Al Menara. Infelizmente, o local estava em obras.
«– Não pode entrar, só daqui a um mês», disse, cordialmente, um militar ali destacado. Tinha como tarefa impedir os curiosos de descer a escada que conduzia ao torreão, junto ao qual fora construída uma casota de cimento, quase em cima de uns canhões ferrugentos. «– Tudo está a ser arranjado para que melhor possam desfrutar deste lugar», garantia o militar, sempre cordato, mas sem ceder, face aos meus argumentos de investigador. Queria certificar, pelo menos, a origem dos canhões.
Seria talvez ali, junto às “ameias em círculo, com alguns canhões ferrugentos e mal cuidados, cobertos de ervas e terra”, que grupos de turistas portugueses faziam a sua despedida de Marrocos, com “um jantar simples e simbólico”. Curiosamente, excluindo do programa cultural a praça-forte de Alcácer Ceguer, uns meros trinta quilómetros a nordeste.
Joaquim Magalhães de Castro