Canhões da Praça de Faro
O troço seguinte do percurso, rumo a Tânger, fez-se por uma densa mata de pinheiros, similar à que se encontra na costa portuguesa a norte de Aveiro, só que muito mais suja e praticamente despovoada. Neste último aspecto, pouco terá mudado desde a passagem da expedição quinhentista, que escolheu esta rota devido à escassez de população. Outras das razões foi, como já se viu, a topografia do terreno, bem mais favorável ali do que junto à costa.
A campanha portuguesa montou arraiais numa das colinas sobranceiras à cidade – hoje o bairro residencial de Marchan, habitado por inúmeros estrangeiros – e aí começou a abrir fossos e trincheiras. Este vosso cronista, em simples missão de paz, limitou-se a ser conduzido até à Gare Routière des Voyageurs, a menos de uma centena de metros da praia, após ter cruzado uns subúrbios caracterizados pela presença de unidades fabris com nomes franceses e espanhóis, e cartazes e letreiros apelando à opção Tânger como anfitriã da Expo 2012.
O objecto mais bélico com que me deparei foi um canhão português (lá estavam as quinas e um enigmático Luiz gravados no ferro) de uma época bem posterior à henriquina, virado para o mar, pousado no extenso passeio que se prolonga por vários quilómetros desde o porto, ponto receptor dos barcos que fazem a ligação entre Tarifa e Algeciras, até aos mais recentes subúrbios, desta feita, marcados por novos empreendimentos turísticos, avistando-se mais a nordeste o cabo Malabata, onde deixámos para a posteridade um farol e um baluarte fortificado.
Junto ao canhão travei conhecimento com uma dessas personagens que em Marrocos se designam faux guides, ou seja, os falsos guias. Abordam-te, como quem não quer a coisa, dando explicações a propósito disto e daquilo como se fossem versados em todas as matérias e mais alguma, e nem ao Domingo tiram folga. Convém dar-lhes alguma atenção, pois, afinal, como os próprios dizem, limitam-se a fazer pela vida – «há que ganhá-la, messieur» – e até podem, eventualmente, fornecer informações preciosas.
«– Na Praça de Faro há muitos outros. Portugueses, espanhóis e de outros países», informou o homem, ao reparar que o supra mencionado canhão me chamara a atenção.
Durante a caminhada ao longo do passeio marítimo, tendo sempre ao meu lado direito um areal imenso – 150 metros de orla marítima aproveitados por ginastas para praticar ousados saltos mortais – cruzei-me com muita gente, de olhar absorto, fixando o horizonte. Sonhavam certamente com a Europa, ali tão perto.
Uns vinte minutos depois, estava na parte antiga da cidade, assinalada por moradias coloniais do período espanhol, embora com elementos arquitectónicos de óbvia inspiração portuguesa. Nas residenciais existentes ao longo de uma rua bastante íngreme, o privilégio de um duche quente era adicionado ao preço da diária, sem qualquer margem para negociação, o que contrariava a habitual prática.
«– Acha caro doze euros? Isso é quanto você paga por um café no seu país», disse-me, com maus modos, o mal-encarado gerente de uma dessas hospedarias, perante o espanto demonstrado face aos preços praticados.
O homem, no alto da sua ignorância, tomava a nuvem por Juno, desconhecendo as especificidades muito específicas de uma União Europeia já então desunida pela moeda única.
«– Na almedina encontrará maior variedade de alojamento e a preços bem mais acessíveis», aconselhar-me-ia alguém mais atencioso.
E em busca dessa almedina vi-me na Rue du Portugal, como bem indicava uma placa afixada num pedaço da muralha original portuguesa, que desce a colina até a um cais apinhado com os mais diversos tipos de embarcações. Dentro dessa muralha, transposta a Porta Portuguesa, encontraria refúgio no souq, apelidado pelos franceses de Petit Socco, não sem antes ter de me haver com mais uns seis ou sete cicerones de ocasião.
«– Não te preocupes, amigo. Não sou guia, apenas te quero ajudar, sem compromissos», dizia um deles em Castelhano.
Circulavam por ali também africanas e africanos de além-Sara, candidatos a ilegais em terras de Espanha. Um deles aproximou-se de mim e suplicou, em Francês, que lhe desse dinheiro para comer, pois tinha «vraiment faim». Também os havia bem vestidos. Certamente não eram dos que percorriam milhares de quilómetros a pé, acampando ao longo da costa norte de Marrocos à espera de um barco que os levasse, sãos e salvos, se tivessem sorte, até ao lado de lá do Mediterrâneo.
Das labirínticas vielas desembocavam degraus que me trouxeram à memória as “Escadinhas do Duque”, em Lisboa. Bastante mais sujos, é certo, estando bem patente uma notória falta de higiene nas casas de pasto e botecos que ladeavam o seu empedrado. O peixe e o frango, fritos num óleo reutilizado sabe-se lá quantas vezes, eram manuseados à “mãozada” e sem qualquer cerimónia.
Pensão Madrid. Pensão Mimi. Pensão Masada. Não faltava alojamento no coração da cidade que viu nascer o grande viajante Ibn Battuta, cujos relatos inspirariam muitas das sagas do período das Descobertas. Graças à sua imensa fama, o também ilustre geógrafo tem hoje direito a mausoléu e empresta o nome a uma rua, ao aeroporto e a diversos estabelecimentos comerciais, havendo quem esteja disposto a indicar ao visitante a casa onde ele, aparentemente, terá nascido.
Joaquim Magalhães de Castro