Origamis do deserto
Marraquexe foi a capital dos almorávidas e depois dos almóadas, duas dinastias bem conhecidas, pois não só reinaram no Magrebe como também em praticamente toda a Península Ibérica. Os almóadas edificaram muitos dos edifícios intramuros desta conhecida cidade marroquina, entre os quais a tão elogiada mesquita e a torre de Catubia. Deles é também a não menos afamada Porta de Agnau, que passou a ser conhecida como “Porta dos Portugueses”. A respeito de Marraquexe, situada no Hauz, imensa planície de extrema riqueza agrícola, diria o seguinte, um outro Ataíde, Álvaro de seu nome, numa missiva enviada a D. Manuel: «É a mais formosa terra e rica que nunca se viu».
Em 1514, época em que os alcaides árabes, por conveniência, reconheciam a soberania portuguesa em toda a costa marroquina, chegou a ser equacionada a hipótese de os portugueses erguerem fortaleza nessa cidade, tendo sido enviado ao rei local o agente Fernão Dias com esse propósito, mas tal não se concretizou devido à longa distância que a separa do mar. O reino de Marraquexe resumia-se à cidade em si, e o seu soberano estava consciente da fraqueza de um domínio assim.
Anos depois, já num contexto de guerra, promovida pelos ambiciosos, belicistas e poucos escrupulosos capitães portugueses (foram sempre eles, com raras e honrosas excepções, que nos deixaram ficar mal), que lucravam mais com a guerra do que com a paz, a tropa levou três dias a chegar e o ataque fez-se pelas Portas de Fez – hoje “porta do mercado da quinta-feira” – e pela Porta dos Curtidores, isto é, Porta de Dabague. A batalha demorou quatro horas e os nossos viram-se obrigados a retirar, para não mais intentar tomar aquele reduto, que como tal permaneceria. No entanto, em toda a zona envolvente, numa área de vários milhares de quilómetros quadrados, o nosso já conhecido Nuno Fernandes de Ataíde e os seus homens fizeram vassalas e tributárias as populações aí residentes, passando esse a ser considerado território cristão. Aos convertidos chamavam-se-lhes os “mouros das pazes”, pois pagavam impostos e integravam o exército português, dando mesmo vivas (mais para manter as aparências do que por convicção) a “el-rei D. Manuel, nosso senhor” quando cometiam contra os seus semelhantes, agora no campo oposto.
As cavalgadas eram conhecidas como “almogavarias” e chegaram a atingir pontos longínquos da costa. Quem sabe, até o próprio Sara, se bem que não haja documentação conhecida que o comprove. O certo é que ainda hoje se fala, também nos oásis, deste ou daquele “alcáçova dos portugueses”, daquela ou aqueloutra “dança dos portugueses”, dessa ou essa outra “trincheira dos portugueses”, havendo sempre muita dificuldade em distinguir onde acaba o mito e começa a realidade, se é que alguma verdade existe nestes casos.
David Lopes, o nosso maior arabista, no seu livro “A Expansão em Marrocos” – obra que me acompanhou e serviu de referência durante toda a viagem – menciona um facto curioso, que nos mostra o quão longe os portugueses se infiltraram no interior do País. Escreve o historiador que «no ano de 1530 o capitão de Azamor, António Leite, mandava o físico da cidade, mestre Francisco, ao alcaide Latar, de Tédula, nas abas do Atlas para o tratar».
Também num dos períodos em que perdurou a paz, depois de 1538 (a nossa presença em Marrocos nem sempre se traduziu em guerras), foi constituída uma feitoria portuguesa em Fez, logo confiada a Sebastião de Vargas. Este ocupava-se sobretudo da compra de trigo, que remetia para um outro feitor português estabelecido em Larache, mas era ao mesmo tempo um agente político da corte de Lisboa. A feitoria, porém, seria desfeita em 1544.
Portanto, se havia médicos e representantes comerciais, certamente havia também quem se aventurava ou optava por residir no interior magrebino. E lá deixou decerto a sua pegada. Foram esses anónimos, ou personagens perfeitamente documentadas, como Nuno Fernandes de Ataíde, capitão em Safim até 1513, ano em que foi morto em combate, e que tinha a alcunha de “o que nunca está quedo”, que fizeram com que a palavra “português” fosse sinónimo de bravura e ousadia, criando em seu redor uma auréola que ainda hoje persiste.
Errachidia é um local de charneira. A partir desta cidade entramos numa espécie de pré-deserto, até chegarmos a um ponto mais elevado onde se enxerga “o mais longo oásis de África”. Desfruta-se ali de uma excelente panorâmica, junto a uma piscina natural, onde habitualmente as crianças aguardam a chegada dos forasteiros, fazendo pequenos e engenhosos camelos com folhas de tamareiras, tudo isso em questão de minutos. É assim uma espécie de origamis do deserto, que se oferecem ao visitante, na expectativa, como é óbvio, de algum dinheiro em retorno.
À nossa frente, um fertilíssimo vale de palmeiras com casas de adobe habitadas por marroquinos notoriamente negros, a primeira comunidade do género presenciada até ali.
À medida que descíamos para o oásis, foram surgindo hotéis cashbás para turistas, uns mais luxuosos do que outros, e aldeias banais onde as mulheres cobriam instintivamente a cara com os véus à passagem do automóvel com matrícula estrangeira, como se adivinhassem que as queríamos fotografar.
Joaquim Magalhães de Castro