Tagine no planalto
Progredimos rumo ao planalto do Alto Atlas, o L’Arid, onde, quase sem darmos conta, atingimos um colo de 2178 metros – Col du Zad – cota mais elevada que o ponto mais alto de Portugal. É assim como uma espécie de Serra da Estrela, mais rochosa, de pedras vulcânicas e azinheiras, mas não tão bonita. Longe disso.
Veículos de duas e de quatro rodas com matrículas europeias (muito espanhol!) continuavam a passar a alta velocidade. Num descampado, um jovem marroquino, emigrado em Roterdão, fotografava-para-mais-tarde-recordar o seu namorado holandês, uns anos bem mais velho. Alguns quilómetros adiante, quatro mancebos alemães, bem aviados com o kif do Rife, dançavam no tejadilho do transporte que lhes servia também de casa, uma dessas furgonetas à Freak Brothers. Todos eles rumavam, tal como nós, ao deserto dos casbás. Como dizia o livro, “era bom estar em Marrocos!”.
Em Zeida, jantámos um delicioso e autêntico tagine num desses botequins de beira de estrada decorados com fileiras de borregos pendurados em ganchos. Os olhos claros e o porte largo do cozinheiro eram em tudo semelhantes aos de um norte-europeu. Descenderia decerto dos vândalos chefiados por Gaiseric, na origem de algumas das tribos berberes que se opuseram ferozmente à entrada e progressão do Islão, embora o poder dos merínidas árabes acabasse por se impor. Mas convém não lhes falar disso, pelo menos nestes termos, pois hoje todos eles prezam serem bons muçulmanos e descendentes do profeta.
Pernoitamos em Midelt, a 1488 metros, em casa de uma das irmãs de Hassan. Uma casa com pátio e videiras e um portão que dava para as vielas poeirentas. À noite, já com um friozinho assinalável, o cenário trouxe-me à memória a mítica Kashgar (no Xinjiang chinês) do início da década de 1990. Nessa Midelt isolada no planalto – e agora num registo mais ocidental – o Hotel Roi de la Biere ou o Café du Thé eram reminiscências coloniais dos “protectores” franceses onde se refugiavam os homens da cidade quando queriam consumir álcool. Foi o que fez Hassan e uns amigos. Juntos, deitaram abaixo umas quantas cervejas Stork, acompanhadas com azeitonas temperadas com limão, enquanto eu aproveitava para conversar com Zaid, o marido da irmã de Hassan, um homem com óculos de aro grosso e ar de cientista excêntrico. Uma dessas pessoas com quem dá vontade de falar. O Castelhano serviu-nos de veículo de comunicação, pois Zaid trabalhou vários anos em Melilla, com um contrato que não conseguira renovar, como acontecia com muitos dos quase dois milhões de marroquinos emigrados na Península Ibérica.
Por cinco euros ao dia, Zaid fazia agora uns biscates como mecânico, mas a verdade é que, confessava, «às vezes nem tenho vontade de trabalhar por tão pouco». Não tinha alternativa, pois ali não havia subsídio de desemprego que pudesse valer a quem se considerasse mal pago.
Outra das reminiscências coloniais de Midelt eram as casas dos antigos militares franceses habitadas por militares marroquinos. De militar para militar, ficava tudo na corporação, como convinha. Já o souq (mercado) nocturno, esse, era tradicionalmente árabe, se bem que modernizado com cafés com Internet e teleboutiques, ou seja, cabinas telefónicas. Não faltavam estrangeiros nesse quadro; no caso, pilotos profissionais ao volante dos seus bólides adaptados, fazendo os últimos preparativos para o Rali Lisboa-Dakar que se avizinhava.
O pequeno-almoço do dia seguinte foi composto por pão do tipo baguete francesa (concorrente do tradicional pão redondo), acompanhado de paio de frango, azeitonas murchas, manteiga caseira e harira, sopa de grão com cominhos – mais um desses deliciosos e altamente nutritivos preparados à base de leguminosas, a dita “sopa dos pobres”, que nos mercados custavam uns meros trinta cêntimos.
Sabendo que Hassan estava de passagem e como Hassan era homem do deserto, um dos vizinhos entrou na sala com um saco de plástico com pedras para ver se o berbere as identificava como restos de meteoritos, pois sabia que os cientistas estrangeiros pagavam bem coisas dessas. Infelizmente para ele, não era o caso. Daí em diante, pequenas lojas e bancas improvisadas, por vezes disfarçadas de museus-miniatura, com fósseis e restos de meteoritos, ou falsos restos de meteoritos expostos para venda, passaram a fazer parte do cenário, lembrando-nos que os desertos que doravante encontraríamos pela frente foram um dia um imenso mar.
A política expansionista portuguesa em Marrocos seguida pelo infante D. Henrique, e que teve o seu expoente máximo (e trágico) no insano projecto de D. Sebastião, esbarrou em Alcácer Quibir, como bem se sabe, mas houve muitas outras incursões no interior do Magrebe. Ficaram registadas nas crónicas tentativas como a de Nuno Fernandes de Ataíde, que a partir das praças-fortes de Azamor e Safim pretendeu atingir o coração de Marraquexe, carismática cidade erguida aos pés do Atlas, séculos antes de dar o nome a um país que, antes de o ser, se constituiu como protectorado. Em árabe, Marrocos diz-se “Marrokush”.
Joaquim Magalhães de Castro