Medronhos, romãs e azeitonas
A busca de cereais, produto em falta no nosso país, foi um dos motivos que levaram Portugal a África e daí ao mundo. Uma dessas áreas de cultivo extensivo de trigo apareceu-nos logo a norte, na paisagem ondulada que separa o Rife do Atlas. Concluída a ceifa e a debulha desse cereal – a base de alimentação dos marroquinos – a terra estava transformada numa enorme mancha cinzenta e negra, pontuada por algumas graciosas íbis de plumagem branca que esgravatavam grãos perdidos. Essa era apenas uma pequena amostra do dito “celeiro de África”, que encontra a sua real expressão na região de Duquela e da Enxovia, no centro do País, uma vasta área situada entre as praças-fortes de Mazagão e Mogador, e que, virtualmente, foi território português durante um par de séculos.
Não terão estranhado muito o terreno por onde se movimentavam os homens de Quatrocentos, ao longo das múltiplas campanhas militares, se bem que a tendência tenha sido acompanhar a costa, e os que com o interior se tiveram de haver fizeram-no na condição de prisioneiros, o que não deve ter dado para grandes contemplações.
A verdade é que deste lado do estreito, em termos geográficos, pouco muda o território. À medida que avançávamos para sul, era como se o monte alentejano tivesse cedido o seu lugar cativo às curvas e contracurvas do interior beirão. Quase sem surpresa, deparei com um Portugal virado de cima para baixo, plantado com medronheiros, romãzeiras e olivais, alguns deles bem ordenados, outros nem por isso. Em todo o norte marroquino é a azeitona quem mais ordena. E, já agora, também a bolota, imortalizada numa das esparsas povoações que nos surgiram no caminho – a El Bollota.
Talvez devido à maciça cadeia do Atlas, o deserto ainda não avançou, merecendo, por isso, o devido destaque um dos raros cursos de água que atravessamos, o rio Loukos, que desagua em Larache e constituiu a fronteira do território ocupado por Espanha no tempo em que o norte de Marrocos e o Sara Ocidental eram colónias suas.
Nos montes quase despidos, por onde se derramavam rebanhos de cabras, avistavam-se as tradicionais tendas de lã castanha dos berberes nómadas. Ocasionalmente, víamos passar as suas belas mulheres, a cavalo ou de burro, seguindo pelas bermas da estrada, onde também caminhavam, bem devagar, as berberes mais idosas, vergadas pelos feixes de lenha que levavam às costas. Por vezes, eram o único sinal que distinguia este do panorama andaluz ou algarvio.
As habitações dos nómadas alternavam entre a casa tradicional, com terraço de terra batida, e a de tecto de zinco inclinado. Já as medas de feno, implantadas nas sempre obrigatórias eiras ou nos campos em redor, tinham uma camada de barro a protegê-las, pois para os artísticos entrançados de cebolas os oleados amarelos cumpriam a função.
Verdadeiros alienígenas nesse cenário inteiramente rural, os agentes da polícia de trânsito – sempre eles – posicionados nos pontos mais estratégicos do asfalto, espreitavam oportunidades para facturar.
E assim chegámos a uma «enorme presa de água» (como lhe chamou Hassan), nada mais, nada menos, a famosa barragem de Al Wahada, cavada num terreno tão vermelho quanto as grainhas das enormes romãs à venda nos miradouros naturais que permitiam estacionamento para melhor apreciar a, deveras, admirável paisagem. Na viagem rumo ao Sul, essa seria a primeira de duas incursões em território faroeste. Entrámos em Fez percorrendo as suas longas avenidas à europeia, ou, melhor dizendo, à francesa, pois chamam-lhes ali boulevards. Avistavam-se vivendas chiquérrimas que deviam ter custado uma fortuna e cujos portões, cada um mais excêntrico do que o outro, eram distintivos sinais de uma opulência que permanecia nas mãos de poucos.
Hassan alertou desde logo para a má reputação da gente dessa cidade, referindo a impossibilidade de uma visita à almedina sem a presença de um guia.
«– Se não o tiveres, perdes-te pela certa», garantia.
Acreditava que sim. Que isso poderia acontecer. Mas, fosse qual fosse a circunstância, haveria de certeza sempre alguma alma gentil pronta a indicar a saída a quem se mostrasse perdido.
Transportado em carro alheio, não estava em condições de exigir muito. Assim, a passagem por Fez foi mera visita de médico. Só houve tempo para parar junto a dois dos portões da cidade velha – cujo perímetro é inteiramente amuralhado – tirar algumas fotografias e voltar a trilhar caminho.
Apesar da celeridade, e se calhar por isso mesmo, uma foto tirada a um desses portões, “vigiado” por duas guaritas que me pareceram vazias, deu-me a oportunidade de ser confrontado com outra das instituições que convém não fotografar em Marrocos. Refiro-me ao exército. Ainda que não estivesse ninguém dentro das ditas guaritas, logo se materializou à minha frente um tipo uniformizado com cara de poucos amigos. E de nenhuma inteligência, por sinal. De um modo bastante agressivo, falou-me em Árabe dando-me a entender que teria de pagar alguma forma de multa. Estaria, certamente, o rapazote, deitado à sombra de uma árvore ali perto, e vira na “infracção” do estrangeiro uma possibilidade de sacar algumas dezenas de dirhams. Só podia. Ignorá-lo, fazendo-me desentendido, foi a melhor solução encontrada. E não é que resultou!
Joaquim Magalhães de Castro