Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XXXII

Franciscanos Espirituais e Fraticelli

Antes de avançarmos para as heresias pós-Cisma do Ocidente seria importante recordarmos aqui um dos movimentos religiosos e espirituais mais importantes e influentes na Idade Média, que teve sempre, dir-se-ia, “um pé na heresia e outro na ortodoxia”. Brotando da grande árvore que era o Franciscanismo, reavivou o debate mais importante da fase final da época medieval, a questão da Pobreza. Na palavra de ordem que era então o Evangelho e a reivindicação da pureza das Sagradas Escrituras como modelo de salvação e único projecto de vida. O conflito no seio da Ordem Franciscana entre a ortodoxia e os Espirituais e os Fraticelli constitui o pano de fundo d’O Nome da Rosa, de Umberto Eco.

Os Franciscanos Espirituais e os Fraticelli são duas derivações da árvore franciscana que apareceram logo no século XIII, pouco depois da morte de São Francisco de Assis (1181/2-1226), o fundador daquela que seria a maior ordem religiosa do seu tempo. Por ser tão grande e abranger tantas personalidades distintas, tantas seriam as tendências que se criariam em torno de um legado imenso e que suscitaria diferenças, interpretações e observâncias até.

Com efeito, depois da morte de Francisco, a ordem ficou a ser dirigida por frei Elias de Cortona, religioso mais ligado à instituição do que o fundador. Ou seja, mais “monástico” e menos eremítico, menos espiritual e mais preocupado com aspectos administrativos, materiais e de organização. Geram-se duas tendências assim, os Conventuais (ou Claustrais), na linha de frei Elias, mais “relaxados” e mitigando os rigores e asperezas da regra franciscana, que reviram e amenizaram; e os Espirituais, ou Zelantes, que observavam fielmente a Regra e o Testamento do santo, desejando manter a forma de vida original, baseada na pobreza e na renúncia totais, como Francisco pregara e vivera, aliás.

Já aqui falámos de Joaquim de Fiore (ou Flora), o célebre abade cisterciense, autor de profecias escatológicas e apocalípticas, que seriam bandeira ideológica para muitos movimentos que redundariam em heresias mais ou menos reprimidas pela Igreja. Muitos identificaram a sua apregoada “Igreja espiritual” (Ecclesia Spiritualis) com a Ordem Franciscana, além de conotarem o anjo do sétimo selo pregado por Fiore com Francisco de Assis.

Não poucos seriam os Franciscanos a ler e seguir os textos proféticos do abade de Fiore e a estribarem as suas posições na inspirada prosa visionária daquele autor, fundamento que se colava muito bem aos projectos de crítica e de retorno à pureza da forma de vida franciscana original.

 

As perseguições

Elias de Cortona, ministro geral da Ordem em 1221-1227 e 1232-1239, perseguiu por quatro vezes estes dissidentes, mas sempre sem conseguir estancar o movimento dos Espirituais. Tanto na Itália como depois noutras regiões. Alguns conseguirão subtrair-se ao controlo dos Conventuais, como Ângelo de Clareno, que se tornou num dos mais destacados líderes. Os Pobres Eremitas, como se chamariam esses dissidentes, não conheceram sempre tempos de acalmia, pois seriam excomungados pelo Papa João XXII (1316-34), ao qual muitos Espirituais apelidariam de anti-Cristo. Estes excomungados constituiriam a base do futuro movimento mais radical dos Fraticelli.

Na Provença (sul de França) surgiria um outro grande nome do movimento, Pietro di Giovanni (Pierre Jean) Olivi, antes de 1298, também perseguido pelos Conventuais. Por intercessão de Arnaldo de Vilanova, aragonês, junto do rei de Nápoles Carlos II de Anjou e do Papa Clemente V (1305-14), tentou-se uma intermediação entre o ministro geral da Ordem e os líderes dos Espirituais, como Raimundo Gaufredo, Guy de Mirepoix, Bartolomeo Sicardi e Ubertino de Casale. Algo se foi conseguindo, mas com o advento do já referido João XXII tudo voltaria atrás, às lutas e questões acerbas. A Inquisição torturaria 25 Espirituais, depois da prisão, às ordens do Papa, de alguns líderes. Quatro dos 25 acabariam queimados na fogueira, em 1318, em Marselha. Não foram nunca oficialmente considerados totalmente heréticos, ou o todo do movimento, mas alguns dos seus membros tiveram o mesmo fim de outros condenados como hereges.

A Europa viveu suspensa sobre este conflito, que se tornou talvez no clamor mais ortodoxo de reivindicação do regresso da Igreja à pureza original, não apenas da Ordem Franciscana, que mais não era que um microcosmos do estado do mundo clerical da época, em clima pré-cismático.

Ao longo do século XIV o movimento não esmoreceu, conhecendo protecções importantes de soberanos e do Império Germânico, por vezes com alguma simpatia dos Papas mas sempre no limite ténue entre a ortodoxia e a heresia. Não havia aqui nestes movimentos condenações de carácter litúrgico, sacramental ou doutrinal de fundo, apenas uma exigência de retorno à pureza evangélica dos primórdios através da via da Pobreza como forma de perfeição. Apareceram a partir destas dissidências os Observantes, estes um ramo dentro da ortodoxia mas contrário à Conventualidade, impondo uma observância mais rigorosa e regular da Regra. Em 1517 impor-se-iam sobre toda a Ordem, que passariam a governar e já não os Conventuais.

Os Fratelli della Vita Povera – Frades da Vida Pobre, ou Fraticelli, de acordo com definição do Papa João XXII – são uma derivação do movimento dos Espirituais na Úmbria e nas Marcas, no centro de Itália. Provêm do movimento de Ângelo Clareno, depois da excomunhão papal de 1317, tendo-se então organizado como uma ordem franciscana independente e contestando a autoridade do referido Papa. Clareno sobreviveu a todas as perseguições de que foi alvo, acusações e condenações, mas não deixou de granjear uma aura de santidade crescente até à sua morte, em 1337, três anos depois da do Papa Clemente V.

A influência dos Fraticelli não cessou também de crescer, na Itália Central nomeadamente, onde mantiveram uma influência religiosa e espiritual notável, com destaque para Florença. João XXII não deixou nunca de os condenar e perseguir, principalmente depois do Capítulo Geral dos Franciscanos de 1322, convocado para declarar a absoluta pobreza de Cristo e dos Apóstolos, moção que causou brado e furor na Cristandade, em particular na cúria papal. Muito ministros provinciais franciscanos aprovaram essa doutrina, que seria condenada no ano seguinte, 1323, por João XXII na bula “Cum inter nonnullos”, que declarou como “herética a afirmação da pobreza de Cristo e dos Apóstolos” (sic). O Ministro Geral Miguel de Cesena foi excomungado, como outros frades, acusados de heresia e pertença aos Fraticelli. Estes mantiveram-se influentes na sociedade até meados de Quatrocentos, quando foram incorporados nas reformas da Observância. Mas a Questão da Pobreza, de Cristo e dos Apóstolos permaneceu.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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