Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XXII

Dos Valdenses aos Cátaros

A pobreza era cada vez mais a via para a perfeição, para a santidade. Debates, querelas, mais acesas e radicais, era o quotidiano em muitas regiões da Cristandade, nomeadamente nas mais ricas e urbanizadas: Flandres, Sul de França, Norte de Itália. De onde depois irradiavam, tocando outras cidades importantes. Como Lyon, na França, junto ao Ródano, importante burgo de manufacturas de seda, entreposto comercial entre o Norte e o Sul, junto a uma grande via fluvial, a caminho dos Alpes e da Europa Central. É ali que surge uma das primeiras heresias de grande escala na Idade Média, uma nova variante dos movimentos pauperísticos, fundada por Pedro Valdo, a partir de 1175. Designar-se-iam como “Pobres de Lyon”, ou, simplesmente, Valdenses. Ainda existem, não como hereges, mas como igreja protestante.

Valdo era um rico mercador lionês, abastado e com património. Em 1175, tocado pelo movimento da pobreza, abandona a sua actividade, todas as suas riquezas e mesmo a família. Dividiu os seus bens pelos pobres e dedicou-se à itinerância, com os seus companheiros, pregando. Usava uma tradução da Bíblia, em linguagem popular, pois entendia que aquela era o fundamento e fonte de toda a Igreja e da vida eclesiástica. Não era nem foi sacerdote, mas pregava como se fosse. Defendia que cada crente devia ter uma Bíblia. Manteve-se na sua condição laical, numa mendicância radical, itinerante. Todavia, pregava de forma radical, com excessos verbais, de forma violenta e acirrada, principalmente contra o clero e a instituição eclesiástica. Se até esse ponto fora tolerado, como tantos outros pregadores e movimentos, a partir desses excessos a sua aceitação por parte da Igreja acabou. Foi mesmo excomungado. O anticlericalismo feroz era uma marca de muitos movimentos, alguns chegando a atacar e mesmo matar clérigos, monges e religiosas. Que humilhavam de forma bárbara.

Os valdenses assumir-se-iam como uma fraternidade e mais tarde, depois da morte de Valdo, constituíram-se como “Igreja”. Antes de 1220, com efeito, criando uma hierarquia, algo que tanto criticavam na Igreja. Bispos, presbíteros e diáconos figuravam nessa hierarquia, por exemplo. Mas tinham peculiaridades: rejeitavam as transições entre a morte e o Paraíso, ou o Inferno, como mais tarde o Purgatório; não aceitavam orações pelos defuntos, nem indulgências, bem como o culto dos santos. A única oração permitida era o Pai Nosso… A fracção do Pão nas celebrações “eucarísticas” valdenses era de acordo com o modelo da Última Ceia, defendiam. E a confissão laica era um preceito também, pois era considerada como uma forma de direcção de consciência dos convertidos. A pregação era apanágio dos designados “perfeitos”, a elite valdense, dir-se-ia.

Foram condenados pela Igreja, já vimos. Mas não se pense que tal fora funesto para os valdenses. Não, pois só aumentou a sua implantação. Quanto mais eram condenados, mais atraíam conversões. A somar a isto as pregações itinerantes, temos a criação de uma rede de comunicação “herética” no seio do povo. Daí o seu alastramento de Lyon para a Provença (Sul de França) e Norte de Itália, parte oriental da França e mesmo o Centro da Europa e o Nordeste de Espanha. Em pouco tempo…

 

Os Cátaros

Outra heresia importante na Idade Média foram os Cátaros, ou Albigenses (da cidade de Albi, no Sudoeste de França). Tinham uma forte influência dualista, dita maniqueísta. O movimento autonomizou-se a partir de 1170, paralelamente aos valdenses. Provinha da Lombardia e do Languedoc (Sul de França), fixando-se em torno de Albi. A sua pregação e forma de vida eram uma síntese de correntes heréticas mais radicais, anti-clericais e anti-sacramentais, além de tendências ascéticas em relação a tabus sexuais e alimentares. Rejeitavam o Latim litúrgico, aspiravam a contacto pessoal com Deus pela ascese, de forma “directa”, ou pela palavra evangélica, “indirectamente”. O Evangelho era a sua normativa.

Eram dirigidos por uma verdadeira organização e hierarquia eclesiásticas, constituída por uma categoria inferior de fiéis e uma elite, ou “clero”, de “perfeitos” (em Grego “katharoi”, daí “cátaros”, “perfeitos”) e bispos. O seu fundamento era o dualismo, numa crença em que coexistia um princípio do mal, representado pelas trevas e identificado com a matéria, e um princípio do bem, simbolizado pela luz. Ambos os princípios mantinham uma luta universal, eterna. O Deus do Antigo Testamento, criador da matéria, do mundo portanto, era conotado com o princípio do mal, o qual os cátaros consideravam que estava incarnado na Igreja…

Os cátaros reuniam-se em assembleias, com a finalidade de ensino e oração. Tal como os valdenses, apenas admitiam a recitação do Pai Nosso, embora com algumas modificações. Outra prática distintiva era o baptismo cátaro, uma espécie de baptismo diga-se, que consistia num acto litúrgico de renúncia ao mal, ministrado com a imposição das mãos por um “perfeito”. Era o princípio de uma vida de castidade, abstinência e pobreza.

Mas este movimento desafiou a Igreja e atacou-a de forma a criar quase um Estado dentro da França. Inocêncio III (Papa entre 1198 e 1216), a partir de 1200 iniciou uma autêntica campanha contra os cátaros. De forma enérgica, à sua maneira aliás, este grande Papa lutou em todas as frentes da Cristandade e com todos os meios temporais e espirituais que dispunha. Primeiro, alertou os bispos a tomarem consciência para o perigo cátaro e a adoptarem medidas contra a heresia. Depois, encarregou monges cistercienses de pregarem a reconversão dos cátaros. Foram chacinados. Pierre Castelnau, o líder da delegação papal, foi martirizado em 1208. Muitos criticaram o envio destes monges. Entre os críticos estava Domingos de Gusmão e o seu bispo Diego de Osma. Entretanto, o conde de Toulouse, Raimundo, tomou partido pelos hereges. Inocêncio, por isso, proclamou a cruzada, dita “Albigense”.

Foi um erro todavia. Simão de Montfort, conde de Leicester (Inglaterra), convidado pelo Papa a encabeçar a cruzada, mais não fez do que se apoderar de mais património. Como o condado de Toulouse. A guerra estalou, feroz. Beziers foi tomada em Julho de 1209 por Montfort. Que chacinou sete mil mulheres, idosos e crianças refugiados na igreja de Santa Maria Madalena. Pretexto: seriam cátaros. Mas não eram. O Papa distanciou-se de Montfort, deixando de o apoiar. A matança continuou. Só em 1229 acalmaram os ânimos. Mas as heresias não acabaram…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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