Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XLXV

O Libertinismo

Hoje vamos falar de um movimento cultural que teve origens religiosas, ou, pelo menos, forte influência no Cristianismo na Época Moderna: o Libertinismo.

Desenvolveu-se em França no século XVII, ainda que com raízes anteriores, no já aqui falado “livre espírito” surgido no século XIII, da França ao Norte de Itália. Na sua génese, radica no pensamento do abade cisterciense Joaquim de Flora (século XII), que profetizara o advento de uma nova Idade de Ouro do Espírito, suscitando um movimento que era uma espécie de panteísmo (Deus e o universo, ou natureza, são iguais, o mesmo), com práticas de liberdade sexual. A vida humana, para os seguidores deste movimento, era estritamente natural, pois entendiam a Natureza como a consumada perfeição divina. Não há pecado, diziam, os instintos não devem ser reprimidos, com o homem e a mulher a comportarem-se segundo padrões de atracção e prazer físico, sem regras nem imperativos morais.

Na segunda metade do século XVII, na Europa Ocidental, Católica e Protestante, desenhou-se uma transformação ao nível da cultura, das mentalidades, das ideias. O racionalismo entrou no pensamento religioso, tendo sido levado ao extremo e criado um cepticismo, surgindo neste contexto os “libertinos”, que assumiram uma posição de indiferença perante a religião, enveredando por uma perspectiva epicurista, ou hedonista, que se traduzia por uma expressão que muitos usavam: “comamos e bebamos que amanhã morreremos”. Mas a semente tinha sido lançada antes.

Com efeito, uma seita libertina surgira em França, em 1525, entre Lille e Paris, estendendo-se sob a protecção de figuras poderosas, entre as quais se pensa ter estado Margarida de Navarra, irmã do rei Francisco I de França. A seita cresceu, de forma mais ou menos discreta, mas atingiu a austera cidade de Genebra, um feudo calvinista. Aqui, porém, estancou, devido à feroz oposição de Calvino.

 

A NATUREZA LIVRE DO HOMEM

Estava-se numa época de renascimento cultural em muitas nações, onde a exaltação do carácter natural do Homem era algo relevante, face à interpretação mais teológica da redenção de Cristo, a qual conduziu a uma renovação não apenas do espírito, mas também do corpo humano. Ou seja, para os libertinos, com a redenção do corpo de Cristo era devolvida ao homem até mesmo a pureza da carne como nos tempos bíblicos do Éden de Adão e Eva no livro do Génesis. Por isso acreditavam que os desejos naturais não devem ser reprimidos moralmente, mas sim satisfeitos pela vontade de Cristo Redentor. Já antes, no Renascimento, o termo libertino era usado para denegrir várias seitas religiosas, acusadas de anarquia moral, como a do holandês David Joris, que se referia a São Paulo como a “Nova Aliança”, opondo-se à Lei de Moisés. É um exemplo de uma das várias seitas que se encaixam no grupo dos “libertinos”, que não negam Deus nem a religião, intuem-na antes de forma livre e relaxada do ponto de vista moral, em negação às igrejas cristãs, a Católica e as Protestantes.

No século XVII o termo “libertinismo” não se refere já tanto aos mais libertinos, que se justificavam por argumentos religiosos de moral condenável, mas reporta mais para os que se desviaram da “verdadeira fé” e que tinham caído na libertinagem moral. Muitos não interpretavam o termo de forma negativa, refira-se, mas antes como algo próprio dos dotados de um “espírito forte” e que tendem para os extremos, mas convencidos da validade dos seus argumentos.

Mas também se entende o termo como sinónimo de depravação, próprio de ateus subjugados aos prazeres do corpo, ao cepticismo também. Os teólogos cristãos, católicos e protestantes, consideravam o libertinismo como uma conduta licenciosa que leva ao abandono da fé, a uma atitude de crítica ou falta de fé na Igreja, o que era a base da decadência moral. Talvez o motivo pelo qual hoje falemos deste termo e das suas formas tenha na origem o facto de que existiu um “libertinismo” erudito, abraçado por muitos intelectuais da época, atingindo as igrejas cristãs.

Católicos e protestantes defendiam então que o enfraquecimento da moral e, principalmente, a sexualidade sem regras, conduzia à perda da fé, ou diminuição desta. O naturalismo metafísico do Renascimento já evidenciava sinais de ”libertinismo” moral. Depois, aparecem os teólogos fiéis a Roma a acusarem a teoria calvinista da predestinação divina como causa do comportamento libertino. Se a salvação ou a condenação do homem depende da predestinação divina, que já decidira o destino pós-vida terrena, então nada do comportamento dos homens em vida servirá ou valerá para modificar o que já está decidido. Vale tudo, pode-se fazer tudo em vida, pois a “sentença” estava pré-determinada antes do nascimento, diziam os teólogos católicos… Tanto faz pecar gravemente: não era Lutero que dizia que só quem cai no fundo do abismo do pecado pode fazer renascer a sua fé para então iniciar a sua caminhada para a Salvação? Para muitos católicos estava aqui o gérmen do libertinismo…

Também a “fácil devoção” dos jesuítas, na antítese da teoria da predestinação, levava à mesma conclusão, segundo outros teólogos. O Quietismo, a propósito de Miguel de Molinos, condenado pela Inquisição em 1682, argumentava que se é sabido que o corpo do homem, desde Adão, era uma presa do demónio, então se ascética e misticamente libertarmos a nossa alma da carne, então de nada importará que esta (carne) se acabe por corromper com os prazeres terrenos. Havia aqui, pois, “libertinismo”, segundo vários teólogos…

O “libertinismo” foi mais usado enquanto “teoria” para justificar determinados comportamentos morais, como a liberdade sexual. A libertinagem filosófica era para muitos a causa da libertinagem moral, mas para os “libertinistas” não era importante esta relação e causalidade, mas antes o pretexto para os comportamentos e conduta moral mais livres pelos quais optavam. A concepção de libertinismo implantou-se deveras no século XVII, por associação ao niilismo moral e à indiferença religiosa, sendo muito comum em França, entre a burguesia e alguma nobreza. Não se tratava de anticlericalismo por parte destes grupos, mas de uma pronunciada indiferença geral perante as concepções éticas e morais da Igreja Católica, para mais depois dos horrores das guerras religiosas, as divisões políticas e, ao mesmo tempo, devido aos avanços científicos e do racionalismo (Descartes, por exemplo). Uma espiritualidade mais pacífica e menos conducente a guerras e diatribes, sem o peso moral, assim clamavam alguns membros das classes mais abastadas da sociedade francesa, ao mesmo tempo que acusavam a Igreja Católica de forte interferência no Estado. Por isso, não serão perseguidos por este, cada vez mais laicizado. Não foram acusados de blasfémia ou ateísmo, por isso não desapareceram.

Os “libertinos” na Igreja não foram propriamente uma heresia, ou um cisma, nem tanto uma seita, mas um conjunto de indivíduos que apesar de acreditarem em Deus e na vida eterna não alinhavam em polémicas teológicas nem se enquadravam institucionalmente. Negavam qualquer justificação racional da fé, actuando secretamente em pequenos círculos. Mas deixaram marcas, apesar de ocultos, como a luta pela separação entre fé e razão….

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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