Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XLIX

O Jansenismo

Depois da voragem da Reforma Protestante do século XVI, a par do estabelecimento da Reforma Católica a partir do Concílio de Trento (1545-63), em plena fase de implantação desta, surgiu, no século XVII, uma doutrina que seria considerada herética mas que não deixaria de ter impacto na história da Igreja: o Jansenismo. Trata-se de um movimento religioso cuja denominação deriva de Cornelius Janssen (ou Cornélio Jansenius, ou Jansénio), teólogo e bispo católico flamengo (1585-1638), autor da obra fundamental desta doutrina, “Augustinus”, publicada porém postumamente (1640), que causaria particular controvérsia teológica. A partir desta obra, surgem três tendências jansenistas: teológica; moral-espiritual (muito influente no rigorismo moral dos séculos XVII e XVIII); e político, marcadamente anti-jesuítico e galicanista (defensor de uma Igreja nacional em França). Esta última foi a corrente maioritária e talvez a mais perigosa, senão mesmo herética, tendo sido a condenação mais indefensável do movimento.

Mas o que é o Jansenismo? E porque é que o abordamos aqui? Trata-se pois de uma doutrina herética acerca da graça e da predestinação, que deriva do pensamento de Jansenius, a partir da sua obra “Augustinus” (1640). Antes de mais, é bom recordar que esta é uma doutrina herética teologicamente avançada, erudita e estruturada, não uma dissidência popular de cariz cristológico, pastoril ou social, como tantas heresias. Esta heresia é em si mesma reveladora do elevado estatuto intelectual que a Igreja ganhou com a reforma tridentina.

A dita obra póstuma é uma interpretação das teses – tradicionalmente aceites e basilares na Igreja – de Santo Agostinho de Hipona sobre a graça e a predestinação. Jansenius defende, pois, que, sem ter em conta a liberdade e os méritos do Homem, a graça da salvação será concedida apenas aos eleitos à nascença. A tese central advém dos escritos de Baius, professor de Lovaina, cuja tese fora condenada em 1567 pelo Papa Pio V. Retomada pelo bispo de Ypres, Jansenius, foi formalizada na sua obra já mencionada, que foi também condenada em 1643, 1653 e 1656 por Roma, que voltaria a reprovar a doutrina jansenista, em concreto, em 1713. O texto apresenta cinco preposições, nas quais Jansenius explica, em resumo, que a graça de Deus, necessária para a salvação da alma, é concedida, ou recusada, de forma predestinada, sem que as obras do crente, agrilhoado que está ao pecado original, possam alterar o destino da sua alma.

 

Graça e Salvação

Esta visão da salvação opunha-se à que era sustentada na época pelos jesuítas, que defendiam uma graça divina suficiente, a qual traz ao Homem tudo aquilo de que ele necessita para fazer o bem, mas que só pode ser eficaz através da decisão do livre arbítrio. Jansenius, como se pode ver, apresenta influências da Reforma Protestante, nomeadamente calvinistas, articulando-os com princípios católicos e também do Pelagianismo, nas questões do pecado original, da graça e do livre-arbítrio. Recorde-se que o Pelagianismo, uma heresia, negava o pecado original, a corrupção da natureza humana, o servo arbítrio (o contrário do livre arbítrio) e a necessidade da graça divina para a salvação. Englobando estas tendências, o Jansenismo defendia que a graça seria concedida por meio da predestinação, e não pelas acções tomadas de acordo com o livre-arbítrio inerente ao ser humano que faria recair sobre si (ou não) a graça divina. O Jansenismo considerava ainda que fora o pecado original que predispusera o ser humano para o Mal. Assim, a contrição pelos pecados e a comunhão só podiam ser efectuados com a alma completamente pura e arrependida, o que fazia diminuir a frequência com que eram realizados estes sacramentos. Por outro lado, e aqui reside parte da condenação que lhe opôs a Igreja, a doutrina jansenista não observava a obediência incontestável ao Papa nem considerava o culto a Nossa Senhora, além de não reconhecer a capacidade das autoridades eclesiásticas na representação da vontade de Deus na Terra. Ou seja, punha em causa que a Igreja fosse o instrumento de Deus ou que por Ele actuasse.

O Jansenismo ganhou muitos adeptos na Europa, em particular na França, através principalmente do abade de Saint-Cyran, um amigo de Jansenius. Este frequentava a família Arnauld, próxima da abadia de Port-Royal e dos mosteiros afiliados. Este ramo cisterciense francês, muito procurado por religiosas provenientes das elites francesas, foi um dos alfobres do pensamento jansenista, tornando-o também mais aristocrático e bem colhido no topo da sociedade de França. A comunidade feminina desta abadia fora daí expulsa em 1705 por Luís XIV, sob acusação de hereges jansenistas, os quais se consideravam uma ameaça ao Absolutismo francês. De referir que algumas comunidades religiosas francesas – oratorianos, carmelitas, dominicanos – apoiariam também a doutrina jansenista.

Os jansenistas nunca se afirmaram assim, como tal, nem como hereges ou cismáticos, mas simplesmente como católicos. Os seus adversários e opositores é que os baptizaram como “jansenistas”. Uma das figuras ligadas ao Jansenismo foi o filósofo francês Blaise Pascal, que tinha uma irmã religiosa em Port-Royal. Das suas visitas ao mosteiro, tornou-se um fervoroso católico, chegando mesmo a viver como eremita, a par de outros que se lhe juntaram, os “Solitários” de Port-Royal. Em 1656, Antoine Arnauld, reputado teólogo francês, irmão das Madres Angélique Arnauld e Agnès Arnauld, abadessas de Port-Royal, foi excluído da faculdade de Teologia da Sorbonne, pois era o líder dos Jansenistas após a morte do abade de Saint-Cyran. Na base da exclusão, estava a sua recusa em atribuir a Jansenius a as preposições condenadas por Roma. A sugestão sua, Pascal publicaria, em 1656, a primeira de várias cartas defendendo a causa jansenista como dotada de uma espiritualidade rigorosa, contra a relapsia e laxismo, por exemplo, dos jesuítas.

A partir de 1670 o Jansenismo perdeu fulgor na França, deixando de ser ameaça para os que se lhe opunham ou até para a monarquia. Os seus seguidores contaram-se sempre em grande número, embora muitos se tivessem que exilar. Em 1713 Clemente XI promulgou a bula Unigenitus, que infligiu um rude golpe no Jansenismo, ao condenar as 101 preposições elaboradas por Pasquier de Quesnel, o líder do movimento à época. O Jansenismo conheceu, todavia, uma implantação importante e estendeu-se a países como a Áustria, a Itália, a Espanha e os Países Baixos. O grande problema do Jansenismo, já se viu, foi político. A sua tendência galicanista, que punha em causa a soberania absolutista francesa e acima de tudo o primado e unidade de Roma. Richelieu e Mazarin foram dos políticos franceses que mais perseguiram esta doutrina. Mas, no momento da Revolução Francesa, em 1789, cerca de dez por cento do clero francês era jansenista… A sua influência sempre fora enorme, de facto!

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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