As cocas negras do Bramaputra
Durante a curta deslocação à beira-rio deparamos com duas negras embarcações de madeira de convés alto e fundo chato varadas no areal. No seu todo, seja nas obras vivas ou nas obras mortas, não parece haver um único prego, antes cavilhas de lenho. Terá sido num barco do género que Cacela e Cabral retornaram ao Bramaputra, desta vez para refazerem o caminho em sentido inverso. Umas meras milhas somente, pois Hajo era logo ali ao lado. Diz-nos Cacela que se “aparelharam algumas cocas mui fermosas em que viemos a Azó, e ao dia seguinte fomos com ele visitar o Rei”. O jesuíta não se esquece de assinalar a popularidade gozada pelo pequeno rajá de Pandu. Pelos vistos, era muito generoso com a população. Lemos na “Relação” que “pelas ruas o aclamam como se fora rei próprio, ao que ajuda muito a liberalidade com que das suas rendas reparte com muitos, que posto não passem de duzentas mil tangas cada ano, contudo lhe luzem muito”.
Hajo, discreto subúrbio de Guwahati, era aquando a visita dos jesuítas sede do poder onde tinha o rajá a sua corte. Tentar identificar o paço onde eles foram recebidos é tarefa a que nos propomos. Não vai ser fácil. As construções palacianas da época eram, regra geral, de madeira e, como tal, perecíveis.
Atravessada a ponte de ferro novecentista sobre o Bramaputra, o nosso motorista demonstra algumas dificuldades em encontrar o caminho. Ao terceiro ou quarto inquérito, a uns quantos transeuntes, todos em vão, lá deparamos com uma placa ferrugenta (cortesia antiga do Assam Tourism) indicativa do templo. O Hayagriva Madhava, local de veneração a Narasimha, um dos avatares de Vishnu, espelha-se nas águas esverdeadas do enorme tanque existente no sopé da colina de Monikut, onde está implantado o templo. Ali fazem os hindus as suas abluções rituais, esteja a água limpa ou não. São motivo de adoração o Ganges e demais cursos ou reservatórios de água sagrados, mesmo que no leito destes flutuem carcaças de animais, quando não são restos de cadáveres por queimar, pois nem sempre o dinheiro chega para o fuel necessário e só aos mais ricos está destinada a áquila e a calamba, as perfumadas madeiras outrora tão procuradas nas costas da Cochinchina e do Tonquim.
Um indivíduo de meia idade vestido de amarelo (provavelmente brâmane) responde afirmativamente quando lhe pergunto se era ali que vivia o rei de Cocho. Um painel e o parecer de um curioso que entretanto se materializa corroboram a afirmação e eu julgo ter desvendado o mistério. «Foi aqui que os padres portugueses foram recebidos». Ao ouvir tão apressada conclusão, logo o homem se contradiz, replicando num Inglês requebrado mas contundente: «Não. Está errado. O rei de Cocho nunca veio a esta terra. Se o fizesse ficava cego. Esta é casa do Senhor Vishnu, e só ele nela pode residir. Se o rei esteve com os padres só pode ter sido em Cooch Behar». Enfim, claramente estamos perante um caso de bairrismo extremo. O nosso interlocutor, nativo de Assam e enquanto tal ferrenho defensor da sua dama, é incapaz de conceber que a terra natal tenha sido alguma vez controlada pelos cochos, mesmo quando estes não passavam de moços de recados dos mogóis. Porém, para não nos deixar totalmente à deriva, numa simpática movida pró-diplomática, e também para não perder de todo a face, acrescenta: «Há ainda descendentes seus. Vivem em Calcutá».
No momento da nossa visita está a escadaria principal de acesso ao templo vermelho e amarelo guardada por uma cabra negra, de carne e osso, e dois leões de pénis erectos e igual número de guerreiros, há centúrias em saibro e cimento grudados em cada um dos lados da porta de entrada principal. De arquitectura similar à das mundialmente afamadas caves de Ellora, e datado do sexto ou sétimo século antes de Cristo, o Hayagriva Madhava constitui, juntamente com aquelas, um dos mais antigos centros de culto a Vishnu. É também considerado sítio sagrado pelos budistas, que o associam à vida e obra do Gautama, daí a grande quantidade de peregrinos de diferentes partes do mundo que ali se deslocam para venerar a imagem do “Mahamuni”. Resiste à cruel passagem dos milénios uma secção do templo original, agora paredes meias com aquela mandada construir por Raghu Devan Narayan (avô de Bir Narayan) em 1583.
Eis que se apresenta o guardião do local. Um avôzinho brâmane com óculos de lentes fundo de garrafa e discurso num Inglês imperceptível. Penoso se torna ouvi-lo dissertar sobre a história do monumento e só insistimos com o sacrifício porque o homem é de uma genuinidade desarmante. Do seu discurso, apenas retenho que «Vishnu ergueu o templo numa só noite» e que este é «único em todo o mundo». Num recanto exterior há um altar a uma Kali ancestral cuja raiva vai sendo perpetuada pelo vermilhão polvilhado pelos crentes que nunca deixam esmorecer as candeias coladas ao chão untoso com tanto ghee, a manteiga vegetal que alimenta o lume. O ghee está para o Hinduísmo como o azeite para a tradição judaico-cristã.
Nas paredes exteriores, altos-relevos de elefantes, flores de lótus, motivos geométricos e botânicos e, de certo modo desfasado dos Budas e divindades hindus também ali estampados, o que aparenta ser um pele-vermelha, apoiado num cajado e com o característico penacho na cabeça. Aquilo deixa-me intrigado e abre o apetite para o recheio do santuário.
Joaquim Magalhães de Castro