Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXXVIII

O Anticlericalismo – I

Tantas vezes aqui se tem aludido a esta expressão. Sempre associada aos movimentos que se posicionaram contra a Igreja, ou contra os seus membros. Como, aliás, o tema sugere em parte. Mas será importante procurarmos esclarecer o que é afinal o anticlericalismo e como se manifestou na história recente da Igreja. Em termos gerais, podemos considerá-lo uma hostilidade contra o clero e as instituições eclesiais da parte de indivíduos, grupos ou mesmo de Estados. Nas épocas em que a Igreja assumiu posições de destaque nos campos político, social, económico e cultural, as tensões anticlericais sentiram-se mais. Como também nos tempos em que caiu em tentações de autoritarismo clerical (clericalismo) ou na exagerada ingerência na política e governação. Na Idade Média, o anticlericalismo em nada beliscou a Igreja, ao contrário das épocas subsequentes, principalmente a partir da Reforma Protestante no século XVI e depois com o Iluminismo e o advento do Liberalismo. A Revolução Francesa (1789) é o acontecimento de charneira, a par da extinção da Companhia de Jesus (1759) e depois com a extinção das ordens religiosas em vários países católicos a partir de finais de Setecentos, ganhando novo impulso na transição do século XIX para o XX (Kulturkampf, República em Portugal…). Na actualidade, confunde-se com laicismo ou indiferença religiosa.

Não faltam marcos na história do anticlericalismo, ou deste na história da Igreja. A oposição ao clericalismo é antiga, isto é, à influência das instituições eclesiais na vida política, na sociedade, na cultura, no ensino… Por vezes, essa influência não existia, era mais uma presunção dos anticlericais do que uma realidade. Mas não se deixava, porém, de se apregoar contra o “clericalismo”. O anticlericalismo é uma das armas do secularismo, ou seja, da remoção da Igreja da vida pública.

Como foi também um dos estandartes de muitos protestantes nos alvores da reforma, o combate ao clericalismo como algo identitário no Protestantismo. O movimento de Dissolução das ordens e instituições religiosas, clericais dito de outro modo, em Inglaterra na primeira metade de Quinhentos atesta a importância do anticlericalismo como marca distintiva dos protestantes em relação aos católicos, ou “papistas”. Atingiu extremos, mas nada comparável ao que se viveu na Revolução Francesa, com mortes, tortura e uma autêntica “caça” aos clérigos. Os que sobreviveram ou mantiveram a sua condição clerical, foram forçados a converterem-se em funcionários públicos e adstritos ao Estado e jamais a Igreja.

 

A SACROFOBIA…

Foi sem dúvida terrível o século XIX para a Igreja Católica. Na Europa mas também no Novo Mundo, em particular na América Latina. Em diversas formas e em vários momentos, o anticlericalismo tornou-se numa bandeira recorrente nessas regiões, uma moda quase. Pode-se comparar com o que tem sucedido em vários países islâmicos nos últimos decénios, onde começam a surgir movimentos de contestação aos clérigos islâmicos como forma de “ataque” ao Islão e sua influência social.

O anticlericalismo no Ocidente é caracterizado normalmente por duas fases: uma primeira denominada de “anticlericalismo cristão”, ou “crente”; a segunda recebe já a designação de “contemporâneo”, ou “não crente”. A primeira fase é quase tão antiga como a Igreja, caracterizando-se por crítica a vícios e abusos, concretos, do clero, ou aos seus quantitativos exagerados e infinito poder, mas sem nunca pôr em causa o poder da Igreja na sociedade ou o seu papel dominante no Estado. O anticlericalismo contemporâneo é radical e surge no século XVIII, no Iluminismo racional. Caracteriza-se por uma visão racionalista e consequente crítica aguda da sociedade sacralizada do Antigo Regime e do poder absoluto e omnipresente da Igreja Católica, mas não apenas, atacando também por vezes as Igrejas Protestantes. A Igreja e seus membros eram obstáculos ao progresso e à liberdade, à igualdade e à fraternidade universal, apregoavam os mais exacerbados e ferozes anticlericais.

No caso da Igreja Católica, esta na essência, na sua missão e utopia é algo fantástico, bom e verdadeiro; mas é mal servida, por clérigos que não fazem jus a essa “beleza” da instituição e antes a deformam e corrompem. Assim se pensava até ao século XVIII, no seio dos anticlericais. Depois, passar-se-á a condenar a instituição, infectada que estava por todos esses agentes maus, que minavam a organização e o cumprimento dos objectivos da Igreja, que estava mais preocupada, diziam os críticos, com a sua posição do que com o bem dos fieis e os valores do Evangelho. O ataque aos dogmas absolutos e antes inatacáveis torna-se usual no anticlericalismo não crente a partir do século XIX, como temos vindo a denotar nos últimos artigos.

O anticlericalismo contemporâneo, não crente, tenderá progressivamente a deixar de ser algo apenas negativo, ou seja, de negação e oposição, para se projectar gradualmente na definição de um programa de carácter social e político, no qual defende uma vida pública, o Estado enfim, o quotidiano, sem a Igreja e seus agentes. Ou seja, numa visão mais moderada, sem matar clérigos ou extinguir instituições (embora não se tenha deixado de o fazer…), o projecto pauta-se pela secularização da sociedade, identificando-se cada vez mais com o laicismo. Depois aparece o anticlericalismo misturado no anti-religioso, já que antes eram, em teoria, diferentes, mas confundindo-se erroneamente. Textos fundamentais, dogmas, crenças, ritos, devoções, práticas, etc., tudo o que for fenómeno religioso deverá ser extirpado ou retirado da esfera de influência na sociedade. Estamos no anticlericalismo ateu já, que recusa a religião.

O anticlericalismo pode dividir-se também em “elitista” e “popular”. O primeiro é intelectual, ideológico, político. Hoje em dia denomina-se de “político” ou “institucional”. Foi sempre académico, forjado nos meios cultos, em oposição ao segundo, mais violento e iconoclasta, ou até sacrofóbico. A violência física contra clérigos e edifícios ou objectos de culto é a sua “marca d’água”, como se viu a partir da Revolução Francesa e depois, por que não, em Portugal, na extinção das ordens religiosas em 1834 e depois em 1911, quando se mediam os crânios dos jesuítas expulsos no Terreiro do Paço, em Lisboa, a ponto de embarcarem na expulsão do País. Na Guerra Civil de Espanha (1936-1939) foi também evidente o anticlericalismo mais brutal, não apenas popular mas também ideológico. Como aconteceu no mundo islâmico, na Turquia das doutrinas laicistas de Mustafa Kemal Atatürk, ou no Irão dos Pahlavi (até 1979), por exemplo. O religioso deve pertencer ao domínio do privado, não é “coisa pública”, lembram os anticlericais. Que parecem pretender, tantas vezes, impor o laicismo como coisa pública, e não do domínio privado….

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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