Bengala e o Reino do Dragão – 41

As tentativas de conversão

No decorrer da estada dos dois jesuítas na corte butanesa, Shabdrung ordenaria que três dos seus monges os acompanhassem em permanência. Dois deles eram muito jovens ainda. Um de doze anos, “muito ingénuo e de habilidade”, e outro de dezanove, “que tem particular aplicação em aprender o que se lhe ensina”. Cacela e Cabral, aproveitando a proximidade, foram-nos catequizando, ou como o primeiro diz, instruindo-os “nas cousas da nossa Santa Fé”. O autor da “Relação” refere ainda um quarto monge, “de 27 anos, mui principal e de muitos parentes” que durante todo o tempo acompanhava o monarca, “ajudando-o nas obras da sua curiosidade de pintura, escultura e marcenaria em que está sempre ocupado para ornato da imagem do seu pai”. Ora, o dito lama, que os portugueses esperavam vir a converter um dia, pois o próprio se mostrara aberto a tal, seria detentor de múltiplos talentos artísticos, daí Shabdrung – bastante inclinado para as artes, como mencionámos em anteriores crónicas – tê-lo escolhido como seu “mestre”. O talento do clérigo, pelos vistos, estendia-se a outras áreas. Ajudou o padre Cacela a pôr em Butanês correcto – “boa linguagem”, no seu dizer – as orações e os cânones que os padres iam traduzindo e que se destinavam aos futuros neófitos. Eram elevadas as expectativas.

Certo dia, ao rever um texto de Estêvão Cacela que explicava o porquê de “a Santa Cruz ser sinal cristão” e outro relativo ao nascimento de Jesus Cristo e “à pureza da imaculada Virgem Senhora nossa”, o dito monge confessou-lhe que esse ensinamento se impregnara no seu coração, e que isso “o contentava muito”. Noutra ocasião, um homem vindo de uma aldeia vizinha com o intuito de visitar a tão falada capela que o padre tinha improvisada numa das salas do mosteiro, e após assistir à missa ali realizada, mostrou vontade de se converter. Com isso esperava que o Nosso Senhor lhe perdoasse um pecado que o trazia muito desconsolado, e que era, “por desastre com uma flecha matara um homem”. Garante Cacela que o dito camponês regressara à capela no dia seguinte, assistira à liturgia e assim continuara a proceder durante todo o tempo em que os jesuítas ali permaneceram. Outros havia que, “afeiçoados às nossas cousas nos têm trazido os filhos para os ensinarmos”. Um dos quais, mostrara uma particular devoção e estava imensamente grato pela “mercê que diz Nosso Senhor lhe fizera” ao ter dado saúde a um filho que trouxera ali doente na esperança de conseguir a cura. Estavam nessa altura os padres na companhia de Shabdrung, na sua tenda real, “o qual pedindo alguma coisa santa para remédio, deu a João Cabral uma relíquia, à qual o homem atribuiu a saúde do filho”. Informa ainda Cacela que outros aldeões pediam com frequência água benta “com que se dizem bem dos seus achaques”.

Muita outra gente, entre eles alguns monges, certamente mais por curiosidade de que por genuína vontade de abraçar outro culto, visitava a capela e com eles transportavam ofertas de leite e de fruta, que depositavam junto às imagens dos santos que ornamentavam o interior daquele singelo templo católico. No fundo, faziam aquilo que costumavam fazer nos seus habituais locais de culto onde também abundavam estatuetas de diversas divindades, noite e dia alumiadas por velas. Diz-nos Cacela que essa gente, pasmada, se prostrava muitas vezes diante das imagens da Virgem Senhora Nossa e de Cristo Nosso Senhor, “beijando com muita devoção o pé do altar”.

Em contrapartida, o jesuíta português queixa-se de ter de conviver com o pagode budista mesmo ao lado, onde, dizia ele, “é contínua a guerra que o demónio faz as almas”. Era com tal metáfora que ele sintetizava o cantar e o rezar dos lamas das escola do rei e o som de vários instrumentos com que sempre estavam ocupados “em seu culto”, sugerindo até que o rei Shabdrung reprovaria essa actividade, aventando a hipótese de este um dia poder vir a converter-se ao Cristianismo. Escreve ele: “e assim de que haver estes princípios podemos conjecturar progressos melhorados no bem das almas, confiando em Deus Nosso Senhor que, saindo deste forte que aqui tem o demónio, nos dê muitas vitórias dele, desapossando das almas que aqui tem sujeito”.

Lembra ainda Cacela, que além do mosteiro de Chagri, no restante reino quase não existiam pagodes. Diz-nos que durante as primeiras dezasseis jornadas em que andaram de serra não depararam com nenhum, tão-só, no cume de uma serra, “um alpendre de pedras, umas sobre as outras, bem mal feito com algumas pinturas do demónio e alguns ídolos”. Em Paro, por exemplo, a cidade mais importante da época, os jesuítas apenas viram uma casa pequenina “de um lama particular”, que lhe servia de pagode. Movido pelo entusiasmo e cheio de esperança de um possível território fértil para conversões, Cacela sugeria que fossem construídas mais capelas ou igrejas, à semelhança da existente em Chagri, pois “assim fazendo-se igrejas a que a gente venha e concorra se pode esperar com o favor do Senhor fruto em o bem das almas, nas quais se vê bem a sede que lhe causa a propensão que tem ao conhecimento de seu criador na vontade e gosto que mostram de ouvir as cousas do Senhor que lhe praticamos, e na piedade e reverência que mostram a qualquer imagem que lhe dizemos ser Deus”. E tudo isto era possível porque Shabdrung, monarca tolerante, autorizava os seus súbditos a praticar o culto que desejassem.

Joaquim Magalhães de Castro

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