Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXXI

A Igreja e a Ciência – I

Voltamos hoje à série de artigos sobre o tema em epígrafe. E regressamos para falar precisamente de um dos temas mais intensos da História da Igreja e do mundo actual: a Fé e a Ciência, ou vice-versa. Ciência não se aporta aqui no sentido estrictamente ligado às ciências naturais, físicas ou exactas, mas antes no sentido geral, que aliás lhe fora dado por Aristóteles e depois por São Tomás de Aquino. O filósofo grego definia a Ciência com um conhecimento seguro e evidente, obtido a partir de demonstrações. O santo dominicano vai na mesma esteira, afirmando a Ciência como o conhecimento das coisas a partir das suas causas. Neste sentido, a Ciência compreende todo o conjunto dos estudos universitários, por exemplo. A Igreja, em conexão com a Ciência, tem aqui o significado de qualquer igreja que clama autoridade em assuntos de doutrina e ensino, como a Igreja Católica, pela sua universalidade e pela sua reivindicação de poder exercer essa mesma autoridade. É neste contexto que vamos abordar a relação entre Igreja (Fé) e Ciência.

Em primeiro lugar, uma reflexão, no sentido positivo e da harmonia: quais são os pontos de contacto entre a Ciência e a Fé? São principalmente os que se confinam às ciências filosóficas e históricas, às ciências sociais e humanas num sentido mais lato, ou Humanidades, dir-se-ia. Na Filosofia, o ponto de contacto é a ideia da existência de Deus e as Suas qualidades (unidade, personalidade, eternidade); Deus como finalidade do homem e de todas as coisas criadas; liberdade de vontade humana, a lei natural.

Na História e nas ciências linguísticas os pontos de contacto residem: na unidade histórica da “raça” humana e do idioma original; na história dos patriarcas bíblicos, de Israel (como conceito histórico-geográfico nas Sagradas Escrituras, atenção) e da sua crença messiânica; na história de Cristo e da Sua Igreja; na autenticidade dos Livros Sagrados; na história dos dogmas, dos cismas, das heresias; na hagiografia. No Direito tocam-se na ciência da ética e na lei: origem do direito e do dever (o positivismo realista de Augusto Comte e o positivismo subjectivo de John Stuart Mill); na autoridade dos Governos de origem cívica (veja-se o “Contrato Social”, de Rousseau, ou a “Crítica da Razão Pura”, de Kant); o contrato matrimonial, a sua unidade e permanência; nos direitos e deveres naturais das famílias; na liberdade religiosa (separação da Religião e do Estado, tolerância). Depois temos o ramo da Medicina, com as ciências médicas e biológicas, onde se têm gerado inúmeras discussões quanto à existência da alma no ser humano, por exemplo, a sua espiritualidade e imortalidade, a sua diferença em relação ao princípio vital dos animais; a unidade fisiológica do homem; a justificação da prevenção e da extinção da vida humana, um conjunto de questões que, de acordo com a maior parte dos estudiosos, se encontra fora do domínio da Medicina.

 

GRANDES QUESTÕES

Depois temos pontos de confluência da Fé com as Ciências Naturais, ou na filosofia natural: criação do mundo (doutrinas materialistas, eternidade da matéria, necessidade absoluta de leis naturais, impossibilidade de milagres, ou a origem darwiniana do Homem); o Dilúvio, a sua existência e universalidade geográfica ou humana, se foi abrangente ou apenas tocou alguns povos… As ciências matemáticas e experimentais, ou exactas, como muitos as definem, pouco ou nenhum contacto terá com a Fé, segundo vários teóricos. Durante muito tempo, acreditou-se, por exemplo, que o sistema geocêntrico estava contido na Bíblia, crença totalmente errónea, mas que foi usada para acusar a Igreja e a sua sustentação dessa teoria. Os fenómenos celestes ocorrem nas Sagradas Escrituras, de facto, como a Estrela dos Reis Magos, o eclipse solar na lua cheia da Páscoa, a “chuva de estrelas” (como avisos do Juízo Final), mas são todos de carácter milagroso e sobrenatural, não tendo nada a ver com Ciência, nem pretendendo ter, aliás.

Depois temos debates sobre a liberdade legítima, por exemplo. Esta é necessária tanto para a Ciência como para qualquer desenvolvimento humano, mas é uma das reflexões de fundo a esta relação entre Ciência e Fé: o que é a “liberdade legítima”? o que a legitima? Quais são os seus limites? Mas também se discute a liberdade ilimitada, que a Ciência reclama, mas que a Igreja considera, “grosso modo”, irrazoável e injusta, pois pode conduzir à desordem e à rebelião.

Pretende-se nestes artigos discernir acerca das relações e do contexto das mesmas, entre Igreja e Ciência, a história e as questões de fundo desta relação, nem sempre simbiótica ou harmoniosa, mas possível e em procura de equilíbrios e razoabilidade.

Nos últimos séculos, com efeito, a Igreja teve de enfrentar grandes transformações culturais, as quais, com base em descobertas e reflexões científicas, foram “conquistando” cada vez mais a sociedade, ocupando muitas vezes o espaço que era detido pela Igreja, historicamente e quase sem contestação. Para muitos, reside aqui o pomo da “discórdia”. A Ciência ocupando as franjas e depois o cerne da sociedade (industrial, principalmente), no que respeita a explicar, ensinar e prever, preparar e construir o progresso. Mas também na Igreja a Ciência teve um lugar importante e referencial. Muitas são as figuras de eclesiásticos cientistas com grandes contribuições para o avanço dos conhecimentos científicos. O sacerdote jesuíta Pierre Teilhard de Chardin será um dos expoentes desse frondoso grupo, como filósofo, paleontólogo e geólogo, com importantes e decisivos estudos sobres os mamíferos desde o Paleoceno até ao Pleistoceno, ou os seus trabalhos sobre sedimentações (na Geologia), entre outros, todos ainda actuais e fundamentais na construção do conhecimento.

Fé e Ciência podem coexistir? Podem. E devem. O diálogo é necessário. Durante séculos foram intensas e deflagrantes as disputas entre as ciências e as religiões, em confrontos de ideias e debates acesos muitas vezes sem razão alguma, ou sem fim em vista. Se pensarmos nas áreas em que cada uma actua, pode-se concluir que a coexistência é possível e o discurso a respeito de um mesmo assunto perfeitamente alcançável. A religião procura, como um dos seus propósitos, “re-ligar” o ser humano a Deus, transmitindo a revelação da vontade divina através da Palavra de Deus e elevando até Ele as preces humanidade. «E no meu nome serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados de todas as nações» (Lc., 24,47). «Todos eles tinham os mesmos sentimentos e eram assíduos na oração» (Actos 1,14), rematam os textos.

Se reflectirmos nestes pequenos excertos, poderemos assumir que a Igreja deverá sempre interagir sobre os mais diversos campos da vida e do mundo para garantir que a vontade de Deus seja considerada pela humanidade. A religião procura ainda explicar o “porquê” das coisas, dos acontecimentos e de tudo que nos cerca. Estes pontos, todavia, não foram sempre aceites ou abordados de forma serena e harmoniosa. Senão, atente-se na história desta “relação” entre Ciência e Fé…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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