A Questão Social – III
A história da caridade e da generosidade é uma das marcas mais fascinantes do século XIX. E é a marca de água da Igreja desses “tempos de chumbo”, de dificuldades, de pobreza e doença, fome e guerra. É por tudo isso, e na forma de resposta, a época da criatividade da Igreja, por excelência. Se no embate ideológico e teórico, os ganhos foram reduzidos e as feridas abertas ficaram mais dolorosas, nas respostas pragmáticas e activas a Igreja mostrou criatividade e assertividade, mitigando o sofrimento e honrando-o, humanizando as formas de o aplacar e de respeitar o ser humano. Nunca a Igreja foi tão eficaz na criação de soluções, passando para além dos problemas e das discussões. Mesmo com a secularização e laicização, com a redução do número de cristãos, a Igreja reinventou-se e criou forças e energias para assumir a luta contra a miséria e contra o outro lado da moeda do progresso…
Muitas foram as congregações religiosas criadas para dedicar esforços e apoios em prol dos marginalizados, dos jovens, das crianças abandonadas, da prostituição, do desamparo de idosos, da assistência aos doentes e consolo dos moribundos, a todos enfim que a sociedade materialista esquecia ou votava ao abandono, ou a quem dedicava menos zelo e cuidado. Os operários angustiados pelo flagelo da usura dos prestamistas, sofrendo com dívidas e juros das mesmas, sem pão para pôr na mesa, não foram esquecidos. Como também os deserdados do ensino e da educação, que de repente se viram atirados para a rua da iliteracia e afastados das escolas. O ensino gratuito foi outra das batalhas da Igreja, como também no mundo protestante, diga-se em abono da verdade. A educação feminina, em concreto, foi uma das bandeiras e inovações deste esforço educacional de católicos como protestantes. E com êxitos!
Dificuldades, todavia…
Hoje em dia, se desfolharmos qualquer história das instituições no século XIX, encontraremos uma abundante cópia de fundações religiosas de carácter assistencial e humanitário. A via activa era a via da renovação da Igreja, da sociedade em geral, já não tanto a via contemplativa. O novo claustro era a cidade, a rua, as praças e a porta das fábricas, o arrabalde e o hospital, a sopa dos pobres. Essas fundações nasceram na dificuldade e adversidade, de mangas arregaçadas, era preciso agir. Mas mesmo assim muitos foram os ataques movidos contra essa crescente atitude humanitária e assistencial da Igreja. Foi mesmo obscurecida e maltratada essa vertente, acusada de se querer substituir ao Estado e de estar a ser proselitista, de querer arrebanhar os que se afastaram e criar uma imagem positiva mantendo os velhos pergaminhos da tradição. Reivindicaram à Igreja o estatuto de filantropia, foi mesmo combatida esta nova acção pelos movimentos sociais e políticos novos, que acusavam a Igreja de paternalismo religioso. O que era uma demonstração activa de solidariedade, fraternidade e assistência, era visto por esses movimentos como nefasto enganador, entre outras acusações. Dir-se-ia, a Igreja era “presa por ter cão e presa por não ter”.
Não se pode deixar de referir que grande parte do afastamento de muitos operários e suas famílias do fenómeno religioso se deve à inércia e inacção, à incapacidade, de uma Igreja antiga, tradicionalista, acomodada e altiva, sem dúvida, se nos concentrarmos no plano da evangelização e da vida pastoral. Essa velha Igreja que não soube adaptar-se às cidades, às fábricas, ao novo tecido económico, laboral, à nova classe social, operária, desenraizada das paróquias e da vida eclesiástica, cada vez mais alheia à prática religiosa. Já não iam eles “à igreja”, mas era a Igreja que tinha que ir ter com eles. E a velha Igreja demorava a perceber essa mudança… Havia uma fatia cada vez maior da sociedade sem doutrinação ou experiência religiosa alguma, as quais desapareciam mal deixavam a sua paróquia rural e demandavam as cidades industriais à procura de melhor vida. Que nem sempre, ou quase nunca, encontravam. A perda de referências religiosas era uma constante em crescimento. O conforto mental e social da paróquia, do pároco, da quermesse e dos dias festivos, as devoções e conhecimento personalizado e integrador de comunidades estáveis, o apoio na desgraça e a exaltação da festa na alegria, tudo isso era uma recordação quase, ou algo esquecido. Nada disso encontravam na nova comunidade, se tal conceito existia, na realidade, aliás, na nova tessitura social.
Culto só havia ao dinheiro e à riqueza nos novos lugares de fixação, não de culto divino. As experiências dos párocos rurais e da velha Igreja de nada serviam nos novos meios urbanos, modelos desajustados e desadaptados, sem respostas adequadas aos novos desafios. Os movimentos sociais e operários forjados nas fábricas e nas ruas, nas desgraças colectivas, tinham melhores respostas, respaldados pela laicização, do que as velhas paróquias urbanas habituadas a outros desafios, anacrónicas e entorpecidas por liturgias e devoções próprias de tempos diferentes. Esses movimentos do século XIX eram mais sedutores, na linguagem, na teoria como, principalmente, na acção.
Poderíamos aqui recordar excepções, claro, como nos Estados Unidos, onde os imigrantes cristãos provenientes da Europa encontravam estruturas eclesiásticas activas e bem adaptadas a estes novos grupos, com capacidade de acolhimento e encontro para todos os que estavam perdidos, desenraizados ou, simplesmente, longe… Será justo pois nomear William Booth (1829-1912) e o Exército de Salvação que ele fundou, que alastrou não apenas na Grã-Bretanha como nos Estados Unidos e no Império Britânico. Booth assumiu uma luta pelo alívio das dificuldades derivadas das más e desesperantes condições económicas, sociais e morais que grassavam no mundo operário, propondo lares de acolhimento para crianças, prostitutas, assistência aos mesmos também, colónias agrícolas, institutos de crédito para pobres ou apoio à migração para colónias ultramarinas.
Em 1891 surge a “Rerum Novarum”, encíclica da lavra do Papa Leão XIII, o primeiro documento pontifício a estudar em profundidade o problema social desencadeado pela industrialização. Condena o Liberalismo e o Socialismo, reconhece o direito natural à propriedade e o seu valor social, atribuindo ao Estado o papel de promotor do bem comum, da prosperidade pública e privada, de forma a superar o absentismo social do Estado liberal. Reconhece ainda o direito ao salário justo aos operários, mas condena-se a luta de classes, embora se aceite o direito de associação para defesa dos seus interesses comuns. Na actualidade, lendo o documento, achamo-lo limitado, mas a sua importância para o Catolicismo foi imensa, do ponto de vista social. É um documento realista, sem utopias, trabalhando no mesmo terreno do Socialismo, sem rejeitar o sindicalismo ou a promoção da base operária, mas com base no Evangelho e no direito natural enquanto capaz de analisar a realidade social e de fornecer respostas. É, pois, a Doutrina Social da Igreja, em resposta à Questão Social e às suas agruras.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa