Os canhões da unificação
Situada a dois mil metros de altitude naquele que é considerado um dos mais belos vales do País, Paro foi desde tempos imemoriais relevante rota de comércio que ligava o Tibete ao subcontinente indiano e hoje ostenta (ainda) alguns dos mosteiros mais emblemáticos do Butão. Erguido em 1645, a mando de Shabdrung, o dzong de Rinpung (inconfundível devido ao seu telhado amarelo) usufrui de vista privilegiada sobre o vale de Paro. Durante séculos serviria este imponente edifício de cinco andares como eficaz meio de deterrência às inúmeras tentativas de invasão por parte dos tibetanos, e, já na era actual, tornar-se-ia mundialmente conhecido por terem sido aí filmadas muitas das cenas do filme “O Pequeno Buda”, de Bernardo Bertolucci. Do décimo primeiro ao décimo quinto dia do segundo mês do calendário lunar tradicional do Butão (geralmente em Março ou Abril do calendário gregoriano) realiza-se nas cercanias um grande festival anual, aquilo que os butaneses designam de tshechu. Nessa ocasião são levadas em procissão algumas imagens sagradas, cerimónia seguida de uma série de danças de máscara tradicionais subordinadas a temas religiosos protagonizadas por monges de diversas idades.
Encavalitado a uma cota um pouco superior, apresenta-se em toda a sua imponência uma torre cilíndrica denominada Ta Dzong, literalmente “torre de vigia”, pois tinha como função a defesa da cidade. Fomo-la encontrar ainda não totalmente recuperada dos estragos provocados pelo terramoto ocorrido em 2011. Com largas paredes e de sete andares é senhora de um desenho bastante peculiar: circular e em forma de concha, pretendendo o arquitecto de outrora estabelecer ali uma metáfora da união do Sol (círculo) com a Lua (crescente). Acreditam os butaneses ser essa união o epítome da fama e da vitória. Construído em 1649, este dzong serviria de alojamento aos soldados butaneses e, posteriormente, de prisão para os cativos seus inimigos e, a partir de 1968, viu ser aí instalado o Museu Nacional de Paro. Hoje provisoriamente exibido em barracões com telhados de zinco, o seu espólio preenche os espaços de várias galerias classificadas segundo diversa temática. Vemos ali artefactos pré-históricos, manuscritos, têxteis, pinturas, artes decorativas, peças de bronze e itens epigráficos, filatélicos e de numismática. Um dos itens mais misteriosos e intrigantes é o dito “ovo de mula”! Não há nenhum registo escrito quanto à sua origem e tudo o que se conhece acerca deste insólito objecto deve-se à história oral. São muitas as armas tradicionais (arcos, flechas, escudos e capacetes) e modernas (espadas), estas últimas ofertas dos diplomatas estrangeiros para o terceiro e o quarto reis do Butão por ocasião de suas respectivas coroações.
Do espólio, constam ainda dois pequenos canhões, alegadamente portugueses, postados – presumo que provisoriamente – à porta da entrada principal, ao lado de uns cacifos. Um é de ferro; o outro de bronze, e em ambos não há qualquer sinal que os identifique. Nem brasão, nem data, nem nada. Como foram ali parar é questão que o guia Sangay Dorji não consegue responder. Parece-me até que o homem tem alguma relutância em falar desses objectos que, ao que consta, seriam sete ao todo. Aliás, a respeito deste assunto, além dos textos butaneses, apenas encontrei um artigo assinado por Carlos Guímaro (que fez uma residência de investigação no Butão) e publicado no revista Oriente, matéria que mereceria posteriormente a atenção de Nuno José Varela Rubim, autor de vários livros sobre assuntos militares de antanho, entre os quais o excelente “A organização e as operações militares portuguesas no Oriente, 1498-1580”, que terá redigido um artigo sobre esta questão. Aparentemente, nenhuma outra iniciativa terá sido tomada para tentar deslindar a origem dos misteriosos canhões e qual o seu destino. Os dois que vi não tarda nada e regressarão ao seu local habitual, indo talvez ocupar sítio mais condizente com a sua condição e, quiçá, acompanhados de relevante informação, pois de momento nada informa o visitante.
Os textos butaneses dizem-nos que além da oferta de material bélico, Cacela e Cabral, em nome do rei de Portugal, teriam também disponibilizado ajuda militar, oferta que Shabdrung terá recusado. Compreensivelmente, nada disso é mencionado na “Relação” de Cacela que ao longo do relato salienta por diversas ocasiões a dupla função, espiritual e material, do monarca, não esquecendo de mencionar os territórios em seu poder: “é este Rei, que se chama Droma Raja (Dharmaraja), de idade de 33 anos, el-Rei e juntamente lama-maior deste Reino de Cambirasi, primeiro dos do Potente por esta parte, que é mui grande e povoado”.
No seu texto, Cacela tem o cuidado de realçar o motivo da querela entre os reis tibetanos, ambos nascidos no Tibete Central. Pelos vistos, fora o próprio Shabdrung – o Droma Raja de Cacela – que lhe contara a razão da guerra com Demba Cemba, o seu rival de Xigatsé. Aparentemente, este não lhe queria entregar uma importante relíquia – “um osso de seu pai defunto que o rei lhe pedia” – e por essa razão Shabdrung abandonara a cidade natal, “grande boa, que se chama Ralum, e fica cinco dias de caminho”.
Joaquim Magalhães de Castro