Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – IX

A persistência das controvérsias até ao ano mil

As heresias que afligiram a Igreja dos primeiros séculos foram causadas acima de tudo por um processo de tentativa de compreensão da verdade revelada. As heresias e controvérsias teológicas revelam-nos, todavia, duas facetas: as exigências cristãs e as tendências culturais e espirituais dos cristãos de então. São o eco, provavelmente, de épocas de angústia ou dúvida. Nessa época, a maioria das heresias, como temos visto, são de tipo judaico-cristão e surgiram devido a interpretações doutrinais distintas que se estribaram em dois polos: por um lado a cristologia, do outro a vivência da lei de Moisés.

Ao longo dos mais de dois mil anos de vida da Igreja de Cristo, e se nos focarmos nos primeiros séculos já aqui tratados, poderíamos classificar como inumeráveis as tensões e desvios que padeceu a instituição eclesial. Na origem estão os desvios em relação aos ensinamentos deixados por Jesus e pelos Apóstolos. Já proferia o Papa Bento XVI, quando ainda era o cardeal Ratzinger, que quem estude os tratados de teologia, encontrará um cemitério de túmulos de heresias vencidas pela Teologia. As heresias ali sepultadas nesta metáfora não serão apenas tentativas falhadas de procura da verdade por parte de alguns cristãos, nem apenas memórias de falhas interpretativas. Soltas e desgarradas de nada valeram, perderam-se; se juntadas a outras e corrigidas, ajudaram a construir chaves de interpretação. Todavia, revelam o fervor religioso e o fervilhar de sentimentos de crença e vontade de desvendar mistérios e explicar sinais, símbolos e valores transcendentais. A fé, interrogava-se um célebre jansenista de seu nome Saint-Cyran, não estará pois constituída por uma série de contrários unidos pela Graça? Mas, apesar destes aspectos positivos, ou de uma visão mais positiva, as heresias minaram a unidade da fé e a estabilidade doutrinal necessária para a progressão da Igreja.

 

Interpretações doutrinais

Nestes intentos interpretativos, recordemos mais algumas heresias do primeiro milénio da Encarnação. O Adopcionismo será a primeira, tendo sido uma forma de Monarquianismo. Esta, assinale-se, constituía uma série de crenças que sublimavam a Unidade Absoluta de Deus. Chocava, porém, com a doutrina da Trindade, que vê em Deus uma unidade composta pelo Pai, Filho e Espírito Santo. Os modelos propostos pelo Monarquianismo foram, por isso, rejeitados como heréticos pela Igreja. O Adopcionismo considerava que Cristo era filho de Maria e José, adoptado por Deus desde o seu baptismo, mas abandonado por Ele no momento da Sua morte na cruz. Teódoto de Bizâncio, Paulo de Samóstata, Marcelo de Ancira foram alguns dos próceres desta doutrina, que facilmente ruiu.

Quase a par da anterior, surge o Docetismo, que negava a humanidade de Cristo, todavia. Era mais que uma seita, era mesmo uma tendência platónica, valorizando sobremaneira a realidade histórica. Era uma tendência, do ponto de vista teológico, que minimizava o valor salvífico da Encarnação, que apesar da condenação como seita não desapareceu de todo da teologia cristã. Desvalorizava ainda o matrimónio e a vida conjugal.

Temos também nesta linha de heresias o Ebionismo, uma das primeiras de tonalidade pauperística, ou seja, enfatizava o valor da pobreza. Algo que nunca mais desapareceria na Igreja, mas com outras roupagens, como mais tarde veremos. Os ebionistas tinham uma forte tradição judaica, pois pretendiam sobrepor a lei de Moisés à Lei de Cristo. Professavam o dualismo criacionista, na linha do Adopcionismo, negando também a morte soteriológica (salvífica) de Jesus. Recusavam ainda os sacrifícios, que substituíam por abluções (lavagens) rituais diárias. São Irineu de Lyon foi um dos teólogos que mais atacou esta corrente, ao qual se seguiu Orígenes, que chamou aos seus seguidores de ebion (do hebraico אביונים, Evyonim, “pobres”), no caso, “pobre de entendimento”, referia aquele teólogo.

Temos ainda a desconhecida seita herética dos elcasaítas, ou Elcasaitismo. Esta deriva de Elcasay, uma estranha figura cujo nome significa “força escondida”, que liderou este movimento de judeus cristãos na Pérsia, no séc. IV. A eles se deve a ideia de conceber dois seres celestiais, um feminino (Espírito Santo), o outro masculino (Cristo), que em repetidas encarnações vêm ao mundo.

 

As heresias do conhecimento

Aparece também neste quadro de heresias o Mandeísmo, que tinha como principal característica a repetição do baptismo e a devoção a São João Baptista, que consideram como o verdadeiro messias. O curioso é que, apesar da sua natureza sectária, persistem até aos dias de hoje, em pequenos grupos residentes no actual Iraque. O Mandeísmo, crença gnóstica, é uma doutrina dualista baseada na oposição entre o mundo e a luz, por um lado (onde habitam seres divinos – os uthra – governados por um ser supremo, ou Grande Vida) e, por outro, um rei mau, filho de Ruah, o espírito (feminino) da maldade. Todavia, subsiste, ao contrário de muitas crenças que eram bem mais realistas e até doutrinárias…

Como o Gnosticismo, uma corrente sincrética que desejava, filosoficamente, o problema do mal. Ou seja, este seria superado através do conhecimento perfeito de Deus e cada qual de si próprio, o que permitia que o homem se livraria dos malignos poderes mundanos para alcançar o universo da luz. O Gnosticismo classificava os homens entre espirituais e materiais, propondo a solução do problema do mal de forma dualista, por meio da concepção da existência de um deus bom e de outro deus mau.

Considere-se ainda o Marcionismo, fundado pelo gnóstico Marcião de Sinope (no Ponto Euxino, ou seja mar Negro, na costa turca), no século II. Permaneceu activo durante mais tempo, atraindo discípulos. Marcião via nos dois Testamentos da Bíblia uma oposição absoluta, não uma concordância. Por isso rechaçou o Antigo Testamento e alguns livros do Novo que fazem referências ao primeiro. Quase que a Bíblia ficava apenas com Lucas e as Cartas de Paulo… Afirmava ainda que a morte de Jesus Cristo foi ineficaz, pois não produziu a redenção, tendo sido apenas uma mensagem de Deus misericordioso, que até então era desconhecido.

Gnósticas, cristológicas, mosaicas ou de pura dissidência ou crítica, estas heresias não deixaram nunca de existir e multiplicaram-se, muitas delas subsistindo. Veremos na próxima semana algumas que influenciaram na Idade Média outros movimentos de fractura e controvérsia no seio da Cristandade.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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