Cartas do Bornéu – 5

A “Regalia” e as corridas de barcos

Nas horas de calor abrasivo não há vivalma nas ruas de Bandar Seri Begawan. Não fossem os visitantes do museu onde se exibem alguns dos presentes oferecidos ao sultão por altos dignitários estrangeiros (que mais se pode dar a quem já tudo tem?), dir-se-ia uma cidade fantasma. À noite, repete-se o panorama. Ruas e passeios públicos quase desocupados; excepção são os mercados nocturnos onde se degusta excelente peixe e se adquire por bom preço uma panóplia de frutos e deliciosos petiscos para levar para casa em saquinhos de plástico de todas as cores, nenhum deles reciclável.

O vistoso edifício, revestido de mosaicos e mármore, onde se encontra sedeado o museu Royal Regalia (“regalia” deriva do termo português “regalo”), inaugurado em 1992 para assinalar os vinte cinco anos de reinado de Hassanal Bolkiah, foi originalmente erigido pelo seu pai, Omar Ali Saifuddien III, tendo em vista um museu em honra de Winston Churchill, estadista que ele muito admirava. Ora bem, esse famoso fumador de charutos, hoje elevado aos píncaros por gregos e troianos, a respeito dos então seus súbditos do sub-continente – na sequência do desvio, consentido pelas autoridades do Raj britânico, de milhares de toneladas de arroz e trigo da Índia para a Inglaterra, no pico da Segunda Guerra Mundial, medida que desencadearia uma fome sem precedentes, a dita Grande Fome de Bengala, responsável pela morte de quase quatro milhões de pessoas, um verdadeiro holocausto, portanto, – disse, textualmente, o seguinte: «Odeio indianos. São um povo bestial com uma religião bestial». Enfim, um racista primário e criminoso de guerra (a ele se imputa a responsabilidade do “roubo” dos cereais) que passou para a história com o qualificativo “libertador da Europa” e ainda por cima levou para a campa o louro Nobel da Literatura. Ridículo, no mínimo. Quanto à “devoção” de Omar Ali Saifuddien III ao seu capataz colonial, diz tudo do existente compadrio entre a elite malaia e os incorrigíveis imperiais britânicos. Não é por acaso que foi concedido à anglo-holandesa Shell, e não a outra, o privilégio de deter, a meias com o sultão, o monopólio da exploração do riquíssimo filão de gás natural e petróleo daquele país. No Brunei, o equivalente à malaia Petronas e à indonésia Pertamina tem nome de conglomerado transnacional. Chama-se Brunei Shell Petroleum.

O museu Regalia Real é um óbvio exercício de culto de personalidade a Hassanal Bolkiah (perdi a conta à quantidade de retratos e fotografias suas ali expostas) e um exemplo demonstrativo de exibição gratuita do poder exercido sobre o poveréu que ali pode apreciar o que nunca terá. Ao mesmo tempo, presumo, foi a forma mais airosa de o sultão se desembaraçar de todos aqueles empecilhos caros que estavam a ocupar espaço lá em casa. Críticas à parte, não deixa de constituir um interessante espaço museológico onde facilmente podemos passar uma hora ou duas. Estão ali peças dos mais variados quadrantes geográficos, quase todas de encher o olho e de grande valor pecuniário e artístico. Uma das salas é reservada aos diferentes tipos de embarcações presentes no sultanato, com exemplares reais, mas sobretudo dezenas de fotos de uma modalidade muito comum no Brunei: as corridas de barcos longos, uma espécie de versão dos barcos-dragão mas sem os homens do tambor e do leme. Ao que consta, a origem dessas corridas deve-se a Charles Brooke, o segundo rajá branco de Sarawak, que nelas encontrou a fórmula ideal para refrear os ímpetos bélicos das tribos eternamente rivais do Bornéu. Um pouco como o que acontece com a devoção clubística e os renhidos de futebol, que muitos consideram formas de catarse dos nossos instintos guerreiros e mais animalescos.

No Brunei a tradição remonta a 1932 e tem no sultão um dos maiores patrocinadores e entusiastas. Anualmente realizam-se, pelo menos, duas importantes competições do género. Uma delas na cidade, no espaço fluvial compreendido entre a praça ribeirinha de Demarga Dereja e a aldeia lacustre do Kampung Air; a outra tem lugar ao longo da península artificial de Serasa, não muito longe da cidade de Muara, com o único porto de águas profundas do sultanato, havendo para o propósito umas bancadas que não só acolhem os espectadores como também protegem as embarcações dos rigores da intempérie. O local é frequentado por famílias que ali fazem piqueniques e de forma descontraída pescam, aparentemente alheios aos bem visíveis avisos da presença ocasional de crocodilos de água salgada, predadores de seres humanos, entre outras espécies.

O átrio de entrada, ocupado com a enorme carruagem real (com umas asas revestidas a ouro nela incorporadas) que transportou o sultão pelas ruas da cidade por ocasião do jubileu de prata da sua coroação, ocorrida em 1968, é o único espaço do Royal Regalia que pode ser fotografado. Uma série de manequins com trajes tradicionais postados em frente da carruagem representam a guarda pretoriana do monarca. Mais adiante, motivo de redobrada atenção da minha parte, dois exemplares de lantacas banhadas a ouro de fabrico local. Mas sobre as tão cobiçadas lantacas do Brunei, e outros aspectos ligados à passagem dos portugueses, falarei nas próximas “Cartas do Bornéu”.

Joaquim Magalhães de Castro

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