O Puritanismo – II
A doutrina da predestinação não era algo que seguia a natureza de Deus, mas era uma expressão da experiência da Graça. Por esse motivo, a predestinação não era igualmente compreensível para os crentes e descrentes, mas era uma doutrina que só podia ser dita dentro do contexto da fé. Os puritanos estavam convencidos de que Deus os havia escolhido, não apenas para a salvação eterna, mas também para colaborar no plano divino da humanidade, da salvação de todos, graças a eles. Graças a este voluntário activismo dos puritanos em prol da humanidade, a sua irradiação, mesmo que em vários grupos, foi até célere e atingindo várias latitudes.
A doutrina de predestinação é um pilar fundamental da teologia puritana. Mas detenhamo-nos um pouco para entendermos a visão puritana da mesma e a sua defesa intransigente pelo movimento. De acordo com esta, Deus teria concordado com um “Pacto de Obras” (ou aliança) com Adão e Eva: se eles não comessem da árvore do conhecimento do bem e do mal, o casal primordial dominaria a Terra para sempre. Mas Adão e Eva desobedeceram a Deus e, consequentemente, o pacto quebrou-se e foram expulsos do Paraíso. A partir de então, ou seja, do pecado original, Adão tornar-se-ia um pecador e um mortal, transmitindo a mesma condição de pecado a todas as gerações subsequentes. Mas ao aplicar a punição, Deus prometeu que os filhos de Adão e Eva triunfariam sobre o mal. Assim foi na “Aliança da Graça”, estabelecida entre Deus e Adão. Por isso, o homem perdeu a sua liberdade e deixou que Deus decidisse quem de entre a descendência de Adão seria salvo. Desde então, o pecado é consubstancial à natureza humana, pelo que as boas obras são inúteis para alcançar a salvação, pelo menos na óptica da maior parte das igrejas reformadas. Mas isso não significa que o homem não se possa mais salvar.
O sacrifício de Cristo, na sua morte no madeiro infame, foi o suficiente para expiar os pecados do homem e dar a partir desse momento a possibilidade de este ser salvo. Mas nem todos os homens de Cristo são salvos. Cristo morreu para salvar os “eleitos” por Deus. Portanto, desde o início, Deus escolheu, antes do seu nascimento (dos homens), aqueles que serão salvos pela virtude de Cristo e os eleitos (condenados) que não podem fazer nada para mudar essa condição, pois todas as suas boas obras são inúteis para alcançarem o perdão de Deus.
OS ELEITOS
Os “eleitos” são aqueles que têm fé em Cristo e em que o seu mérito seja suficiente para eliminar o pecado dos homens e salvá-los. Portanto, o pecado de Adão foi transmitido a toda a humanidade, mas ao mesmo tempo a virtude de Cristo (o novo Adão, mas sem pecado, ou o redentor daquele e da humanidade), a Sua morte na cruz, serviu para salvar todos os escolhidos por Deus. O homem nasce pecador e, como tal, tenderá sempre a pecar, mas, mesmo assim, poderá ser um daqueles que Deus escolheu. A prova crucial da descoberta se alguém faz parte desse grupo privilegiado é a fé, a confiança de que a virtude de Cristo é suficiente para expiar os pecados dos homens, sem precisar de boas obras.
É característico de um “escolhido” ou “santo”, de um “predestinado” para a salvação, ter uma fé verdadeira (esta é um presente de Deus), fé essa que se traduz, naturalmente, na realização de boas obras. Há como que uma constante do “escolhido” contra o pecado que com ele nasce, algo para o qual ele também pende por natureza. A luta reside na resistência e esforço para não cair nessa tentação de pecar e procurar por isso cumprir a vontade de Deus, a qual está imposta através dos mandamentos e inscrita na consciência de cada homem. A alma que nasceu para ser salva, escolhida, ou eleita, por Deus, através do Espírito Santo, conhecerá o processo de regeneração conforme reza em Romanos 8,30: «E àqueles que predestinou, também os chamou; e àqueles que chamou, também os justificou; e àqueles que justificou, também os glorificou». Esta é pois a doutrina da predestinação, pela qual se pressiona cada puritano a desejar ser um dos “eleitos” e, portanto, a ficar obcecado em descobrir, investigar a sua consciência interior, se Deus o elegeu porventura e nele estava a conduzir o processo de regeneração dos predestinados.
Esta ideia de pacto própria da doutrina da predestinação, já agora, e própria do Puritanismo e levada para as comunidades que foram fundadas no Nordeste da América do Norte a partir da primeira metade do século XVII, constituirá uma base e exemplo para textos legais e fundamentais ou de regulação da organização de cada uma dessas colónias. Se pensarmos que as colónias puritanas são das primeiras colónias de povoamento europeu na região da Nova Inglaterra, no Nordeste dos actuais Estados Unidos, poderemos adivinhar a sua influência na formação identitária e cultural das Treze Colónias, ou parte delas, e depois na dos Estados Unidos (1776), mais tarde. E porque não, assinalar a sua influência na Constituição norte-americana de 1787, ou no constitucionalismo em geral, que bebe sem dúvida na ideia dos “pactos” dos puritanos.
Mas na formação das colónias surgem dois grupos no movimento puritano transplantado da Inglaterra para a América do Norte. Falamos dos puritanos propriamente ditos e dos auto-denominados “peregrinos” (ou Pilgrim Fathers). Mas quais são as diferenças? A principal diferença reside no facto de que os puritanos não se consideravam separatistas. Auto-denominavam-se “congregacionalistas não-separados”, o que queriam dizer que não repudiavam a Igreja da Inglaterra como uma igreja falsa. Mas, para muitos episcopalistas e até de alguns presbiterianos, o seu modo de agir foi, no entanto, em tudo igual aos separatistas. Os peregrinos eram tendencialmente separatistas… Os puritanos estabelecidos em Massachusetts Bay, na década de quarenta do século XVII, constituíam já uma colónia de dez mil almas. Depois enxamearam para lá do assentamento original e estabeleceram colónias em Connecticut, New Hampshire, Rhode Island e Maine e, eventualmente, para além dos limites da Nova Inglaterra.
A migração puritana foi predominantemente uma migração de famílias, ao contrário de outras migrações iniciais para a América, que eram compostas em grande parte por jovens solteiros. A taxa de alfabetização era alta, além da intensidade que conferiam às devoções e práticas religiosas, conforme se pode deduzir da leitura de muitos diários sobreviventes, notas de sermões, poemas e cartas, um sentimento religioso que nem sempre correspondeu aos alvores da colonização americana. Articulando-se numa espécie de confederação de igrejas reunidas, o Puritanismo continha em si a semente de sua própria fragmentação ulterior. Alguns grupos dissidentes entre os puritanos começariam, de facto, mais tarde, a proliferar, como os quakers, os antinomianos ou os baptistas.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa