MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 24

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 24

A análise dos cronistas da Calcutta Review

Fundada em Maio de 1844 por um administrador e um reverendo britânicos, com o intuito de “reunir informações úteis e propagar opiniões sólidas, relacionadas com os assuntos indianos”, a revista Calcutta Review, nas últimas décadas do século XIX, mais exactamente em 1871, dá-nos eco da presença de comunidades feringhees disseminadas em toda a província de Bengala, contrariando a ideia feita de que todos os vestígios dos feringhees originais se tinham diluído durante o processo de miscigenação em marcha há, pelo menos, oito ou dez gerações. “Uma comunidade” – admite o não identificado cronista – “talvez não muito pura, mas ainda totalmente distinta da congénere nativa, com a qual coexiste há séculos”. Aponta depois a Calcutta Review, como exemplo, não só a comunidade de Chatigão, a mais relevante de todas, mas também as de Noakhali, Daca, Hughli e, sobretudo, a de Calcutá. Ainda de acordo com o escriba, o estudo de umas e de outras, “apesar do seu carácter melancólico” poderia ajudar os ingleses a compreender a sua postura e vivência na Índia.

Entre as inúmeras famílias cristãs então residentes em Chatigão, acreditava-se que apenas uma delas tinha legitimidade para reivindicar pura ascendência portuguesa, tal era a profundidade da miscigenação em curso. Especificava o redactor que na dita família, “as noivas sempre vieram de outras partes da Índia”; da Índia Portuguesa, presume-se, lembrando ainda a chegada, nos últimos quarenta anos, de alguns migrantes de Cochim, sendo essa “a única fonte da qual derivou sangue fresco europeu”; ressalvando, porém, o facto de nas veias da grande maioria dos feringhees “correr sangue arracanês e muçulmano”.

Lembra-nos a jornalística peça do Calcutta Reviewque no seio dessa comunidade os filhos herdavam sempre os nomes dos pais, fossem legítimos ou não. Sendo este o caso, o reconhecimento público dos progenitores dava-lhes direito a alimentação e personalidade jurídica. São citados, na sequência, os seguintes nomes de família lusitanos, ainda sobejamente comuns na época: “De Barros, Fernandez, De Souza, De Silva, Rebeiro, De Serrao, De Cruz, Dias, Salgado, Da Costa, Penheiro, De Freita, Gonsalvez, Dosange (Dos Anjos?)”. E, se até o início do século XIX se utilizavam nomes próprios como “João, Ignatius, Aura, Candida, Jozé”, no final da mesma centúria o panorama alterara-se: mantiveram-se os apelidos portugueses e os prenomes cristãos passaram a designar-se em Inglês. Além do nome de baptismo, os indivíduos eram geralmente conhecidos por uma qualquer alcunha: um tal John F., por exemplo, era habitualmente apresentado como “Juno Sahib”, e um tal Samuel M. como “Sammy Sahib”.

Em nenhum dos relatos históricos de Chatigão surge mencionada a quantidade de residentes portugueses. Tão pouco cuidaram manter esse tipo de registo os padres de Goa para ali destacados. A mais antiga informação acerca de feringhees fiéis aos preceitos da Igreja Católica Romana remonta a 1859, altura em que se contabilizavam 1025 almas, “510 do género masculino e 515 do género feminino”. No ano seguinte, o número de homens tinha diminuído para 466, enquanto o das mulheres aumentara para 519, significando isso “uma redução de quarenta indivíduos”. Em 1866, a população chegara aos 865, dos quais 424 eram homens e 441 mulheres; ou seja, uma diminuição significativa em apenas sete anos. Além dos residentes do bairro Feringhee Bazar, constatava-se, nas áreas limítrofes, a existência de 322 pessoas de diferentes idades. Destes, “85 eram homens adultos, 107 mulheres adultas, e ainda 82 meninos e 48 meninas”. Graças às diligências do Vigário Apostólico de Bengala Oriental, teve acesso o jornalista da Calcutta Reviewaos registos de nascimento e de óbito de todos os feringhees, entre 1845 a 1865. Nasceram, durante esse período, 984 pessoas – “490 do sexo masculino e 494 do sexo feminino” – e morreram 1082. Devido às leis da Igreja de então – que proibiam o enterro de crianças por baptizar em solo consagrado – não é permitido avaliar o grau da mortalidade infantil, certamente muito elevada nessa época.

Critica o jornalista a “bárbara maneira” como eram tratadas as mulheres dessa comunidade durante o período de parto, “a atmosfera sufocante em que mãe e filho são mantidos, e os alimentos prejudiciais dados ao primeiro, devem tender a causar uma grande mortalidade”. Não era nada prolífica a mulher feringhee, espantando-se o redactor que nenhuma delas tivesse sido mãe antes dos catorze anos. Espantava-se também com os parcos resultados das uniões matrimoniais, em termos de prole: 133 casamentos deram origem a apenas 416 rebentos, “217 meninos e 199 meninas”, ou seja, “uma média de pouco mais de três filhos por cada casamento”, sendo que um em cada doze matrimónios não dava origem a qualquer criança. Família numerosa, podia chegar aos dez filhos, mas só quando havia mais do que uma só esposa.

Noticia o repórter uma única ocorrência de gémeos, lembrando que na Europa estes ocorriam “uma vez em cada 83 nascimentos”, para logo salientar a grande quantidade de feringhees envolvidos afectivamente com “mulheres arracanesas e muçulmanas”, muito embora, a menos que estas aceitassem receber o baptismo, jamais casassem com elas. Quando doentes, os feringhees recorriam a dispensários e a médicos, mas só em último recurso, e tinham por hábito prescreverem medicamentos uns aos outros, considerando completamente absurdas, o nosso cronista britânico, as práticas tradicionais por eles adaptadas. Acreditavam os feringhees, por exemplo, que um sapo vivo preso ao topo da cabeça extraia “o princípio do mal que levava ao delírio e à demência”, e que as folhas de betel amarradas no estômago de uma criança e ali deixadas durante doze horas “curavam infalivelmente as cólicas”. O ópio, em pílulas, “contendo um décimo quarto de um grão”, administrado “primeiro uma vez e depois duas ou três vezes ao dia”, era dado regularmente “às crianças delicadas e febris e àquelas cujos pais trabalhavam ao ar livre”. A inoculação era já prática universal e a ela não fugiam os feringhees, visitados para esse efeito por um “brâmane vindo de Tipura, a cada dois ou três anos”.

Atentemos de seguida a uma série de informações retiradas dos registos do escritório de um juiz: Em 1794 noticia-se a passagem de “dois comerciantes nativos de Portugal”, sendo referenciado também “um marinheiro italiano chamado Flower” e, dois anos depois, a chegada de sete franceses, “dois dos quais comerciantes”. Sabemos, “por um carta datada de 20 de Dezembro de 1796”, que os feringhees possuíam grande número de escravos, algo perfeitamente useiro, na época e no lugar. As escravas conseguiam a liberdade como concubinas, mas aos seus senhores estava reservado o direito de as recuperar quando quisessem. Somos informados que o número de escravos “excedia frequentemente os cinquenta numa só família”, em consequência de casamento com aldeões de humilde ou até miserável condição. Em 1734 era reivindicada a ilha de Kootubdea por uma tal Martha Merchada (Machado?) e o seu marido James Fernandez, a quem a ilha fora concedida alguns anos antes. Em 1798 a senhora Marquard ordena a construção de uma capela, tendo como vigário um certo “padre Manuel da Piedade”. Mandava cultivar a dita senhora algumas terras pertencentes à igreja de Bandel, situada em Rangonia e Ichapur, que deveria prover o clérigo com noventa rupias de receita ao ano. Queixava-se este, porém, nunca ter recebido mais do que setenta rupias e por isso, após a morte da senhora, compensou o défice “cobrando ao marido cem rupias pelo túmulo”, mas este recusou-se a pagar alegando que a capela fora um presente da falecida.

Diz-nos o Calcutta Review– do alto da soez arrogância tão típica dos britânicos dessa época – que, “na aparência, o feringhee é mais escuro que o hindu”, a sua tez de um tom acastanhado e o cabelo preto e brilhante. Baixos, magros, de peito chato “e geralmente mal feitos”, os homens, “quando diligentes, podem realizar o dobro do trabalho que um nativo”, embora não se possa confiar na sua indústria. Quanto às meninas são “ocasionalmente bonitas”, e no Natal, na Páscoa e noutras grandes festas “demonstram gostar de vestir roupas de damasco de cores vivas. O efeito hediondo, no entanto, é parcialmente expiado pelo gracioso véu branco que repousa sobre a cabeça, em jeito de mantilha”.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *